quarta-feira, 2 de março de 2022

CAPÍTULO 3 - Um enviado de Deus - Parte 2

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Um enviado de Deus - Parte 2

 

Primeiro ele falou para eu ficar tranquilo porque comunista não come criancinhas. Se era para me deixar tranquilo isso não funcionou porque eu fiquei apavorado. Aí ele falou que era brincadeira e o medo foi sumindo. Então ele me explicou o que é comunismo. Ele falou muito e a primeira coisa que eu aprendi sobre comunistas é que eles gostam de falar muito. 

 

De tudo o que ele falou, eu entendi que o comunismo começou quando os trabalhadores tomaram o poder na Rússia, mas ele chama trabalhador de outro nome. Como é mesmo? Prole alguma coisa... proletra, não, é proletariado, isso mesmo! A Rússia eu sei onde fica, é um país maior que o Brasil. Esse tal de proletariado fez na Rússia uma revolução, não que nem a nossa de primeiro de abril, uma revolução de verdade, mandou embora o presidente deles, um ditador chamado quizar, é, é isso mesmo, quizar. Aí ele me explicou de novo que ditador é a pessoa que comanda a ditadura. Eu perguntei se no Brasil já teve ditador e ele me disse que o Getúlio Vargas foi um, e aquilo me derrubou...

 

– Não pode ser, o Getúlio não!

– Por que não?

– Por que ele era o pai dos pobres, todo mundo gostava dele...

– Essa é mais uma mentira que contam pra vocês na escola.

– Não, não foi a professora que falou, foi o meu pai e eu sempre acredito no meu pai. Como o Getúlio podia ser ditador se quando ele morreu o Brasil inteiro ficou de luto e chorou por ele?

– O povo muitas vezes é enganado...

– Mas não dessa vez!

– Por que não dessa vez?

– Porque isso muda tudo na minha vida...

– Como assim, o que tem a ver o Getúlio Vargas com você?

– Tem a ver que ele morreu no mesmo dia que eu nasci.

– E que importância tem isso?

– Tem toda a importância do mundo. Se eu nasci no dia em que o pai dos pobres morreu e deixou o país inteiro chorando e de luto, o que eu posso esperar da minha vida?

– Isso é bobagem! Você acha que só nasceu você nesse dia?

– Não, por isso eu acho que tem uma legião de crianças reclamando da mesma coisa, da mesma sina.

– Escuta aqui, Rodrigo, esquece isso que não tem nada a ver. Você é dono da sua história, você é dono do seu destino, entendeu?

– Mais ou menos... E por que você acha que o Getúlio Vargas era um ditador?

– Isso foi bem antes de ele se matar...

– Então quer dizer que ele deixou de ser ditador porque ele quis?

– Ninguém deixa de ser ditado por vontade própria, tem de ser derrubado do poder.

– Por quê?

– Porque ditador é alguém que escraviza outras pessoas, que faz elas sofrerem e nunca vai querer largar o poder, deixar de escravizar os outros. 

 

Aí nesse ponto, eu lembrei do Zé Rubens e contei para ele tudo que eu tenho passado e que o Zé Rubens é o responsável pelo meu olho roxo. Descobri, então, que eu era vítima de um ditador e que tinha de acabar com isso de uma vez. Eu falei que era o que eu mais queria, mas não tinha forças para isso. Ele ficou nervoso e começou a berrar assim ó: o povo unido, jamais será vencido! Não sei o que isso tinha a ver comigo e com o Zé Rubens. 

 

Ele falou que eu era o povo e que o povo só ia se libertar quando descobrisse a força que tem. Que força eu tinha, afinal? O Zé Rubens dava quase cinco de mim e era uns quatro anos mais velho que eu, só estava na mesma classe porque era muito burro e repetia todo ano. Ele falou que a consciência do povo precisa ser despertada e, quando ela é despertada, sua força aumenta e não tem limites, ele pode tudo. Isso não me entusiasmou, porque todo dia eu acordava com a mesma fraqueza que fui dormir. Ele falou que ia me ajudar. Combinamos que no dia seguinte ele ia me encontrar no meio do caminho quando eu estivesse com o Zé Rubens. Fui dormir sonhando com a revolução.

 

No dia seguinte, conforme combinamos, eu voltei pelo mesmo caminho e o Zé Rubens berrando na minha frente.

 

 – Anda aí, Leite Glória, hoje eu tô com pressa!

– Eu sei, mas eu quero te mostrar uma coisa.

– Que merda de coisa você pode ter pra me mostrar?

– Vem comigo que você vai ver.

– É bom que seja verdade, senão vou encher você de porrada, deixar você todo inchado. E aí, mostrou pra mamãe o olhinho roxo?

– Não, – respondeu o desconhecido saindo detrás das árvores – mostrou pra mim!

 

Alguém precisava ver a cara do Zé Rubens quando ele viu meu amigo aparecer ninguém sabe de onde. Tentou mostrar que não estava com medo, mas devia estar se borrando todo naquela bunda gorda.

 

– E aí, vai fazer o quê? Quem é você?

– Não interessa.

– Já sei, você deve ser o comunista que estão procurando. Vou contar pro meu pai e ele vai contar pra polícia.

– Ah, mas não vai mesmo...

– Por que, quem vai me impedir?

 

Eu estava numa ansiedade danada, com receio do meu desconhecido libertador entrar na conversa do Zé Rubens e desistir. Aí, não ia ter mais jeito, ia ser escravo dele para sempre. Mal deu tempo de eu piscar e o Zé Rubens já estava completamente dominado.

 

– Estou sabendo tudo o que você tem feito com o meu amigo Rodrigo. O nome dele é Rodrigo, entendeu? Daqui pra frente é assim que ele vai ser chamado.

– Me larga, você não pode fazer isso comigo, eu sou de menor...

– Eu também, não tem problema nenhum. De hoje em diante você vai tratar o Rodrigo muito bem, vai se afastar dele, só vai falar com ele se ele falar com você, seu monte de merda!

– E se eu não fizer isso, o que você vai fazer, seu comunista fugido?

– É melhor você não querer saber. Se ele me falar um azinho que for, eu quebro você inteiro, não importa onde você estiver, não importa onde eu esteja, eu encontro você e acerto as contas. Antes disso, você vai ter uma boa lição pra não se esquecer do que estou falando.

 

Nunca tinha visto uma cena daquelas. Deus me perdoe, mas não senti pena do Zé Rubens. Ele apanhou pra burro. Depois, o comunista segurou ele bem forte e pediu para eu bater nele. Fiquei sem ação, nunca tinha batido em ninguém, sempre fui saco de pancada. Aí o meu amigo falou para eu lembrar do que ele tinha dito depois de berrar que o povo unido jamais será vencido. 

 

 

Eu lembrei, o povo só ia se libertar quando descobrisse a força que tem. Dei vários socos na barriga balofa do meu antigo ditador, com toda a força que eu tinha. Na cara! Ordenou o meu amigo. O primeiro soco saiu bem tímido. Mais forte! O segundo e o terceiro saíram com mais vontade, a partir daí, com raiva. Eu vi o sangue escorrer na cara gorda dele. Ouvi ele chorar e implorar perdão. Só parei de bater quando percebi que meus dedos também estavam sangrando.

 

– Revolução de verdade se faz com sangue! 

– falou o meu amigo comunista.

 

Depois de dar esse berro, meu amigo largou o Zé Rubens e ele despencou que nem um saco de batatas. Aí o desespero chegou. Será que ele morreu? Perguntei assustado. Vaso ruim não quebra fácil, disse o comunista e fomos embora.

 

Eu não conseguia dormir à noite, só de pensar que era um assassino. Antes de chegar em casa, lavei minhas mãos, mas não consegui esconder o estrago. Meu pai quis saber o que tinha acontecido. Perguntou se eu tinha brigado na escola. Inventei uma estória comprida e ele fez de conta que acreditou. Dois dias se passaram e o Zé Rubens não apareceu na escola, muito menos o comunista no meu caminho. O medo tomava conta de mim. Achei que seria preso. 

 

O alívio só veio no terceiro dia quando o Zé Rubens apareceu novamente na escola, todo remendado. Passou a aula inteira calado e eu apreensivo, com medo da vingança. Quando a aula terminou e a professora pediu para formar a fila, ele passou por mim depois de pedir licença, Rodrigo. Voltei para casa sozinho, feito bobo, sentindo pela primeira vez na vida o verdadeiro gosto da liberdade. Nunca mais o Zé Rubens mexeu comigo, sempre que olhava para mim, abaixava os olhos que nem um súdito diante de seu imperador. Isso para mim era o que bastava, a revolução acabava ali. Não queria o poder, não sentia necessidade de dominação. Estava satisfeito com o retorno à vida normal, com o meu pequeno papel na história.

 

Vi o comunista pela última vez na semana seguinte à minha libertação. Ele estava diferente, sem a cara de fome da primeira vez. Assim que me viu pediu notícias do ditador e eu respondi apenas “deposto”. Ele sorriu e eu reparei nos seus olhos verdes, não tão intensos quanto os meus.

 

– Onde você estava?

– Por aí...

– E me deixou sozinho, com um medo danado de o Zé Rubens ter morrido e de a polícia me prender!

– Se preocupou à toa, você não pode ser preso e ainda não tem condições de matar ninguém.

– Por que, ainda?

– Jeito de falar...

– Ah bom, porque eu não quero nunca matar ninguém...

– Nunca se sabe...

 

 

Aquilo me assustou e me fez ficar preocupado. Alguma coisa dentro de mim dizia que estava na hora de esses encontros acabarem. Falei isso para ele e ele disse que era natural eu me sentir assim, mas que eu nunca deveria esquecer de onde eu vim, de nunca esquecer as minhas origens. Não entendi por que ele estava falando aquilo. Então ele me explicou que eu era povo e já tinha consciência da minha força, não podia mais ser explorado por ninguém. 

 

E eu perguntei como eu podia ser povo com olhos tão verdes e como podia ser forte com braços tão fracos. Aí ele me explicou que na Rússia e na Itália, na maioria dos países da Europa, o povo tem olhos verdes e azuis, é comum. Ele não percebeu, mas com isso ele estava quase jogando por terra a outra parte da minha sina. Depois ele falou que ia embora e eu não consegui descobrir se eu estava achando isso bom ou ruim, pelo menos naquele momento. Pediu para eu nunca esquecer das coisas que ele dissera para mim. Perguntei para onde ele ia e ele disse que o sonho dele era ir para a Rússia, mas antes disso tinha uma missão a cumprir no Brasil. Perguntei que missão era essa. Ele ficou um tempo pensando. Levantou, juntou as coisas e disse:

 

– Ajudar a destruir o sistema! 

 

Não entendi nada, mas dessa vez ele também não explicou nada. Perguntei o nome dele e, como ele parecia não querer falar, eu mesmo botei o nome dele de Gabriel, o anjo enviado por Deus para me salvar. Ele gostou e disse que a partir daquele dia o nome dele seria Gabriel. Deu um abraço bem apertado, como se fosse abraço de amigos mesmo e foi embora. 

 

Uns dois dias depois eu contei para o meu pai. Eu não gostava de esconder nada do meu pai. É claro que eu não falei da surra no Zé Rubens. Se não tinha falado quando era escravo dele, achei melhor não falar depois que me libertei, só falei mesmo do meu anjo comunista. Meu pai chamou minha atenção, disse que eu corri perigo. Tinha de ter falado para ele. Ainda bem que esse comunista desgraçado foi embora, ele disse, com raiva. Eu concordei com ele para não deixar ele pensar que eu tinha virado comunista também, nunca se sabe.  Mas o meu sentimento era bem diferente do dele. Para mim, aquele desconhecido não era um comunista que veio para me colocar em perigo. Era um enviado de Deus que veio para me libertar do Zé Rubens.

 



 

 

 


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