Capítulo 9 - Um militante à deriva - Parte 2
A reforma partidária de 1979, em pleno
governo do general João Baptista Figueiredo – aquele que tinha mais paciência para
lidar com cavalos do que com gente – trouxe o retorno ao pluralismo partidário.
As novas regras impunham restrições severas à formação de partidos políticos. A
proibição de registro de partidos comunistas fora mantida. Mesmo assim, em 1980,
surgiram seis partidos, mas apenas dois podiam ser considerados sucessores de
organizações partidárias pré-existentes. O PT – Partido dos Trabalhadores, nasceu
no dia 10 de fevereiro de 1980, no colégio Sion em São Paulo, com a
participação de diversos representantes dos movimentos sociais e intelectuais
de todo o País. Organizado em torno das mobilizações do “novo sindicalismo” em
unidade com outros movimentos populares, o PT foi fruto da união de movimentos
populares urbanos, organizações de esquerda, intelectuais e políticos vindos do
MDB.
A
concretização de um projeto de partido de massa se deu com a união de
militantes de diferentes bases ideológicas intensificada após a fundação do
partido. Esse balaio ideológico era composto pela concentração em São Paulo das
principais lideranças do novo sindicalismo, encabeçadas por Lula; pela
aproximação de políticos do MDB paulista, marginalizados pelas lideranças do
seu partido após as eleições de 1978; com o engajamento de quadros
intelectuais, juntamente com o apoio das organizações de esquerda na formação
do partido e, finalmente, pela mobilização de um número significativo de
movimentos populares urbanos, em boa parte encabeçados pelos setores
progressistas da Igreja Católica.
Empolgado,
eu tentava compreender como todas essas correntes não se digladiariam e como
fariam para manter a unidade do partido. A Convergência
Socialista teve sua entrada no debate da reforma partidária como proposta
de um partido socialista de trabalhadores. Outros grupos menos conhecidos,
autodenominados trotskistas, entraram da mesma forma no debate partidário. Na
sua maioria, esses grupos eram organizações clandestinas anteriores ao PT, emergidas
em fins da década de 1960 e início da década de 1970. Com orientações políticas
bastante definidas e com certo doutrinamento, esses grupos eram identificados
como: MEP (Movimento de Emancipação do
Proletariado), voltado à luta armada e originado do PCB da década de 1970; LIBELU (Liberdade de Luta), organização
estudantil; Ala Vermelha, dissidência do PC do B; membros da AP (Ação Popular),
da PALOP (Política Operária) e do PRC (Partido Revolucionário Comunista),
dissidência do PC do B.
A
maior bandeira levantada pelo PT era a da ética na política, propondo-se a ser
um partido diferente de todos os demais. Na sua Carta de Princípios, foi
definido como um partido criado para lutar contra a exploração do homem pelo
homem, bem como um partido das massas populares capaz de unir todos os
operários e outros segmentos de trabalhadores que compõem essa massa explorada,
como bancários, professores, funcionários públicos, estudantes e profissionais
liberais. O PT afirmava seu compromisso com a democracia plena, exercida
diretamente pelas massas, pois não há socialismo sem democracia e nem
democracia sem socialismo, rezava a Carta de Princípios.
Depois disso, tome estrelinha vermelha e botons no peito com a inscrição
“oPTei”! Como todo noviço eu estava empolgado com a minha participação política
e daí a me tornar um chato era um passo não muito grande. Nessa época eu não
morava mais na Vila Esperança, dividia um quarto com mais dois alunos: Filipe,
estudante de História que passava mais tempo discutindo política do que
estudando, autoconsiderado guru dos calouros e Douglas, aluno da faculdade de
Medicina, devoto da “canabis” e congêneres. É claro que, sem solicitar, me
tornei discípulo político e futuro cabo eleitoral do Filipe que nutria o
projeto de lançar candidatura a vereador pelo PT. Os ventos estavam propícios
para os planos do Filipe, um filhinho de papai que poderia pagar uma faculdade
particular mas ocupava o lugar de algum filho de operário que ele dizia
defender. A liberdade de imprensa havia sido restabelecida e Figueiredo
promulgara a Lei de Anistia, resultando na volta da maior parte dos exilados e
a libertação de opositores presos, mas excluindo os condenados por “terrorismo,
assalto, sequestro e atentado pessoal”. ARENA e MDB foram extintos. A ARENA
transformou-se no Partido Democrático Social (PDS) e o MDB virou PMDB – Partido
do Movimento Democrático Brasileiro. Surgiram ainda o PDT e o PTB, renascido
das cinzas. As eleições diretas para governador retornaram em 1980.
Minha vida mudara bastante, assim como as pessoas com quem eu convivia.
Voltava a Vila Esperança apenas para rever minha mãe e meus irmãos. Todos
estranhavam meu cabelo e barba compridos. Estranhavam mais ainda meu discurso
político. Minha mãe achava aquilo tudo baboseira e nutria uma antipatia cavalar
ao PT e, principalmente, ao Lula. Sinto que, se meu pai estivesse vivo, não
seria diferente. Procurava, então, não tocar nesses assuntos proibidos e
limitava-me a comentar como estava sendo bom estudar na USP e como a cada dia
gostava mais de arquitetura.
– Então, enfia a cabeça nos livros e esquece a
política! – Aconselhava minha mãe.
Eu entendia a preocupação dela. Apesar dos
ventos de liberdade, setores contrários à democratização promoviam ataques a
bancas de jornal, incendiadas à noite, e organizavam atentados. Aquilo era o
tipo de coisa que não me deixava à vontade, mas empolgava Filipe, meu colega de
quarto e futuro vereador petista, para quem quanto mais a ala linha dura do
exército se manifestasse, mais rápido acabaria a ditadura militar. Filipe era o
típico militante xiita, para quem era Deus no céu e o Lula na terra. O pior era
que ele acreditava que eu estava indo para o mesmo caminho. Crente que eu bebia
na mesma fonte, não hesitava em me arrastar para tudo quanto era manifestação e
aquilo já estava começando a me cansar. Eu ainda não sabia como dar um basta
sem que ele interpretasse minha atitude como uma ruptura com a classe
trabalhadora e a consequente cooptação pelas classes dominantes.
A
gota d’água veio na noite de 30 de abril de 1981. Estava programado um show no
Riocentro em comemoração ao Dia do Trabalhador. Filipe organizou uma caravana
de estudantes da USP rumo ao Rio de Janeiro, não propriamente movido pela
música. Eu era o convidado principal, não adiantava tentar recusar, mesmo que
não tivesse dinheiro, ele pagaria tudo. Quando minha mãe soube, fez de tudo para
evitar a viagem, mas, quem era ela para demover Filipe dos seus planos de
ascensão política? Prometi que seria a última vez e que iria apenas para ver o
show, na volta, romperia com Filipe. Fui, não sem carregar um certo
pressentimento maternal.
Desembarcamos na cidade maravilhosa e fomos direto ao Riocentro. Pairava
um não sei o quê no ar. Ocorrências estranhas se pronunciaram antes mesmo de o
show começar. A Polícia Militar, responsável pela segurança do evento,
estranhamente suspendeu o policiamento naquele dia, sob o argumento de que, por
se tratar de um evento de natureza privada, os próprios organizadores deveriam
se incumbir da segurança no local. Tudo bem, já estávamos lá e tínhamos mais é
que curtir o show. E a noite estava propícia, não fosse, como sempre, as
impertinências militantes do Filipe que conseguiu me arrancar do local para
distribuir panfletos nos arredores do Riocentro.
Contrariado, eu o seguia pelo estacionamento disposto a acabar com
aquilo e voltar para o show que já havia começado. Por volta das vinte e uma
horas, avistamos um Puma metálico com dois ocupantes, deslocando-se lentamente.
Filipe achou o carro suspeito e pediu para que eu o acompanhasse. Mal o carro
saiu da vaga, uma súbita explosão estufou o teto do veículo e destruiu suas
portas. Desesperado, um dos ocupantes se jogou para fora implorando ajuda.
Corremos até lá e constatamos que o outro ocupante provavelmente estava morto,
o que foi confirmado mais tarde. Outras pessoas apareceram e levaram o sobrevivente
para o hospital. Outra explosão ocorreu na miniestação elétrica que gerava
energia para o evento, causada por uma bomba, enquanto que outra bomba jogada
por cima do muro explodiu no pátio, mas não interrompeu o evento nem causou
danos.
Depois ficamos sabendo que os ocupantes do
Puma eram o sargento Guilherme Pereira do Rosário e o capitão Wilson Dias
Machado, militares integrantes do DOI do I Exército da cidade do Rio de
Janeiro. O sargento Rosário, treinado em montagem de explosivos, morreu quando
a bomba foi acidentalmente detonada no seu colo. A alegação do exército foi que
radicais de esquerda teriam sido os responsáveis pelo atentado contra o
governo, mas a alegação caiu por terra quando foram identificados os dois
militares. A “linha dura” do exército e o SNI (Serviço Nacional de Informações)
fizeram um esforço conjunto para encobrir o caso; porém, um inquérito policial
militar foi aberto e o fracasso nas investigações para provar a organização do
atentado pela “linha dura” levou o ministro da Casa Civil, Golbery do Couto e
Silva, a renunciar ao cargo. Passados três meses de investigação, o coronel
Wilson Machado foi indiciado por homicídio qualificado, o general da reserva
Newton Cruz foi indiciado por falso testemunho e desobediência, o sargento
Guilherme do Rosário também seria condenado se estivesse vivo.
O episódio serviu para acelerar a falência
da ditadura militar no Brasil e possibilitar ainda mais a conquista da
democracia quatro anos mais tarde. De quebra, serviu também para acelerar meu
rompimento como cabo eleitoral do futuro vereador Filipe, para alívio da minha
mãe. E, por que não dizer, meu também?
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