quarta-feira, 8 de junho de 2022

CAPÍTULO 9 – UM MILITANTE À DERIVA – PARTE 2

 

Capítulo 9 - Um militante à deriva - Parte 2


A reforma partidária de 1979, em pleno governo do general João Baptista Figueiredo – aquele que tinha mais paciência para lidar com cavalos do que com gente – trouxe o retorno ao pluralismo partidário. As novas regras impunham restrições severas à formação de partidos políticos. A proibição de registro de partidos comunistas fora mantida. Mesmo assim, em 1980, surgiram seis partidos, mas apenas dois podiam ser considerados sucessores de organizações partidárias pré-existentes. O PT – Partido dos Trabalhadores, nasceu no dia 10 de fevereiro de 1980, no colégio Sion em São Paulo, com a participação de diversos representantes dos movimentos sociais e intelectuais de todo o País. Organizado em torno das mobilizações do “novo sindicalismo” em unidade com outros movimentos populares, o PT foi fruto da união de movimentos populares urbanos, organizações de esquerda, intelectuais e políticos vindos do MDB.

 

     A concretização de um projeto de partido de massa se deu com a união de militantes de diferentes bases ideológicas intensificada após a fundação do partido. Esse balaio ideológico era composto pela concentração em São Paulo das principais lideranças do novo sindicalismo, encabeçadas por Lula; pela aproximação de políticos do MDB paulista, marginalizados pelas lideranças do seu partido após as eleições de 1978; com o engajamento de quadros intelectuais, juntamente com o apoio das organizações de esquerda na formação do partido e, finalmente, pela mobilização de um número significativo de movimentos populares urbanos, em boa parte encabeçados pelos setores progressistas da Igreja Católica.

 

     Empolgado, eu tentava compreender como todas essas correntes não se digladiariam e como fariam para manter a unidade do partido. A Convergência Socialista teve sua entrada no debate da reforma partidária como proposta de um partido socialista de trabalhadores. Outros grupos menos conhecidos, autodenominados trotskistas, entraram da mesma forma no debate partidário. Na sua maioria, esses grupos eram organizações clandestinas anteriores ao PT, emergidas em fins da década de 1960 e início da década de 1970. Com orientações políticas bastante definidas e com certo doutrinamento, esses grupos eram identificados como: MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado), voltado à luta armada e originado do PCB da década de 1970; LIBELU (Liberdade de Luta), organização estudantil; Ala Vermelha, dissidência do PC do B; membros da AP (Ação Popular), da PALOP (Política Operária) e do PRC (Partido Revolucionário Comunista), dissidência do PC do B.

 

     A maior bandeira levantada pelo PT era a da ética na política, propondo-se a ser um partido diferente de todos os demais. Na sua Carta de Princípios, foi definido como um partido criado para lutar contra a exploração do homem pelo homem, bem como um partido das massas populares capaz de unir todos os operários e outros segmentos de trabalhadores que compõem essa massa explorada, como bancários, professores, funcionários públicos, estudantes e profissionais liberais. O PT afirmava seu compromisso com a democracia plena, exercida diretamente pelas massas, pois não há socialismo sem democracia e nem democracia sem socialismo, rezava a Carta de Princípios.

 

     Depois disso, tome estrelinha vermelha e botons no peito com a inscrição “oPTei”! Como todo noviço eu estava empolgado com a minha participação política e daí a me tornar um chato era um passo não muito grande. Nessa época eu não morava mais na Vila Esperança, dividia um quarto com mais dois alunos: Filipe, estudante de História que passava mais tempo discutindo política do que estudando, autoconsiderado guru dos calouros e Douglas, aluno da faculdade de Medicina, devoto da “canabis” e congêneres. É claro que, sem solicitar, me tornei discípulo político e futuro cabo eleitoral do Filipe que nutria o projeto de lançar candidatura a vereador pelo PT. Os ventos estavam propícios para os planos do Filipe, um filhinho de papai que poderia pagar uma faculdade particular mas ocupava o lugar de algum filho de operário que ele dizia defender. A liberdade de imprensa havia sido restabelecida e Figueiredo promulgara a Lei de Anistia, resultando na volta da maior parte dos exilados e a libertação de opositores presos, mas excluindo os condenados por “terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. ARENA e MDB foram extintos. A ARENA transformou-se no Partido Democrático Social (PDS) e o MDB virou PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Surgiram ainda o PDT e o PTB, renascido das cinzas. As eleições diretas para governador retornaram em 1980.

 

     Minha vida mudara bastante, assim como as pessoas com quem eu convivia. Voltava a Vila Esperança apenas para rever minha mãe e meus irmãos. Todos estranhavam meu cabelo e barba compridos. Estranhavam mais ainda meu discurso político. Minha mãe achava aquilo tudo baboseira e nutria uma antipatia cavalar ao PT e, principalmente, ao Lula. Sinto que, se meu pai estivesse vivo, não seria diferente. Procurava, então, não tocar nesses assuntos proibidos e limitava-me a comentar como estava sendo bom estudar na USP e como a cada dia gostava mais de arquitetura.

 

Então, enfia a cabeça nos livros e esquece a política! – Aconselhava minha mãe.

 

     Eu entendia a preocupação dela. Apesar dos ventos de liberdade, setores contrários à democratização promoviam ataques a bancas de jornal, incendiadas à noite, e organizavam atentados. Aquilo era o tipo de coisa que não me deixava à vontade, mas empolgava Filipe, meu colega de quarto e futuro vereador petista, para quem quanto mais a ala linha dura do exército se manifestasse, mais rápido acabaria a ditadura militar. Filipe era o típico militante xiita, para quem era Deus no céu e o Lula na terra. O pior era que ele acreditava que eu estava indo para o mesmo caminho. Crente que eu bebia na mesma fonte, não hesitava em me arrastar para tudo quanto era manifestação e aquilo já estava começando a me cansar. Eu ainda não sabia como dar um basta sem que ele interpretasse minha atitude como uma ruptura com a classe trabalhadora e a consequente cooptação pelas classes dominantes.

 

     A gota d’água veio na noite de 30 de abril de 1981. Estava programado um show no Riocentro em comemoração ao Dia do Trabalhador. Filipe organizou uma caravana de estudantes da USP rumo ao Rio de Janeiro, não propriamente movido pela música. Eu era o convidado principal, não adiantava tentar recusar, mesmo que não tivesse dinheiro, ele pagaria tudo. Quando minha mãe soube, fez de tudo para evitar a viagem, mas, quem era ela para demover Filipe dos seus planos de ascensão política? Prometi que seria a última vez e que iria apenas para ver o show, na volta, romperia com Filipe. Fui, não sem carregar um certo pressentimento maternal.

 

     Desembarcamos na cidade maravilhosa e fomos direto ao Riocentro. Pairava um não sei o quê no ar. Ocorrências estranhas se pronunciaram antes mesmo de o show começar. A Polícia Militar, responsável pela segurança do evento, estranhamente suspendeu o policiamento naquele dia, sob o argumento de que, por se tratar de um evento de natureza privada, os próprios organizadores deveriam se incumbir da segurança no local. Tudo bem, já estávamos lá e tínhamos mais é que curtir o show. E a noite estava propícia, não fosse, como sempre, as impertinências militantes do Filipe que conseguiu me arrancar do local para distribuir panfletos nos arredores do Riocentro.

 

     Contrariado, eu o seguia pelo estacionamento disposto a acabar com aquilo e voltar para o show que já havia começado. Por volta das vinte e uma horas, avistamos um Puma metálico com dois ocupantes, deslocando-se lentamente. Filipe achou o carro suspeito e pediu para que eu o acompanhasse. Mal o carro saiu da vaga, uma súbita explosão estufou o teto do veículo e destruiu suas portas. Desesperado, um dos ocupantes se jogou para fora implorando ajuda. Corremos até lá e constatamos que o outro ocupante provavelmente estava morto, o que foi confirmado mais tarde. Outras pessoas apareceram e levaram o sobrevivente para o hospital. Outra explosão ocorreu na miniestação elétrica que gerava energia para o evento, causada por uma bomba, enquanto que outra bomba jogada por cima do muro explodiu no pátio, mas não interrompeu o evento nem causou danos.

 

     Depois ficamos sabendo que os ocupantes do Puma eram o sargento Guilherme Pereira do Rosário e o capitão Wilson Dias Machado, militares integrantes do DOI do I Exército da cidade do Rio de Janeiro. O sargento Rosário, treinado em montagem de explosivos, morreu quando a bomba foi acidentalmente detonada no seu colo. A alegação do exército foi que radicais de esquerda teriam sido os responsáveis pelo atentado contra o governo, mas a alegação caiu por terra quando foram identificados os dois militares. A “linha dura” do exército e o SNI (Serviço Nacional de Informações) fizeram um esforço conjunto para encobrir o caso; porém, um inquérito policial militar foi aberto e o fracasso nas investigações para provar a organização do atentado pela “linha dura” levou o ministro da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, a renunciar ao cargo. Passados três meses de investigação, o coronel Wilson Machado foi indiciado por homicídio qualificado, o general da reserva Newton Cruz foi indiciado por falso testemunho e desobediência, o sargento Guilherme do Rosário também seria condenado se estivesse vivo.

     O episódio serviu para acelerar a falência da ditadura militar no Brasil e possibilitar ainda mais a conquista da democracia quatro anos mais tarde. De quebra, serviu também para acelerar meu rompimento como cabo eleitoral do futuro vereador Filipe, para alívio da minha mãe. E, por que não dizer, meu também?




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