domingo, 5 de junho de 2022

CAPÍTULO 9 – UM MILITANTE À DERIVA – PARTE 1

 

 

Capítulo 9 – Um militante à deriva – Parte 1

 

O fim do meu calvário começou quando resolvi pôr um ponto final na minha clausura e tomar finalmente um rumo na vida. Não teria futuro como autodidata. Também não poderia continuar vivendo à margem da história. As cicatrizes emocionais davam mostras de que só seriam fechadas se eu me dispusesse a isso. Disposto a não me deixar vencer pela sina maldita trazida do berço, passei a me interessar por política à procura de um papel social no mundo.

 

O regime militar já dava mostras de não estar tão garantido com as vitórias sucessivas da ARENA, o partido governista sobre seu opositor. Tendo como foco a repressão, a injustiça social e a desigualdade do modelo econômico, o MDB conseguiu expressiva vitória no Senado nas eleições de 1974, durante o governo Geisel, marcado pelo processo de distensão lenta, gradual e segura para reimplantar a democracia no País. As vitórias do MDB em 1976 e 1978 iniciaram uma onda de mobilizações populares menos sujeitas à repressão. Os movimentos populares retomavam aos poucos a atuação política. A reboque de tudo isso, eu me engajei de corpo e alma na luta das classes trabalhadoras, a despeito dos meus olhos tão, tão verdes.

 

A eclosão dos movimentos sociais a partir da segunda metade dos anos 1970 teve como destaque o movimento dos trabalhadores, trazendo no seu bojo o “novo sindicalismo”, marcado pela ruptura com as estruturas do “sindicalismo varguista”, pautado nas alianças entre os líderes sindicais e o governo. Lá estava eu, me posicionando contrariamente ao legado deixado por ele, o próprio Getúlio Vargas, umbilicalmente preso à minha sina maldita. Em pouco tempo eu já dominava todo o palavrório político e marcava terreno como militante das causas populares, tentando com isso me desgarrar definitivamente do “pai dos pobres” e da sua morte premeditada no dia em que vim ao mundo.

 

Principal cenário desse novo sindicalismo, a região do ABC seria palco de uma série de greves, como a de 1978. Surgia aí a figura de maior destaque no universo sindical, o ex-torneiro mecânico Luiz Inácio da Silva, ou Lula. A novidade no sindicalismo da época era a nova maneira de conduzir as negociações entre patrões e empregados, com a autonomia do trabalhador sendo colocada em primeiro plano e o embate e a resistência como as principais armas em contraposição ao velho sindicalismo que privilegiava os acordos e a conciliação entre patrões e empregados.

 

Recém-saído do casulo que eu mesmo criara, e neófito na militância política, eu conciliava minha atuação com os preparativos para o vestibular. Insatisfeita com o meu repentino despertar de libertador das classes oprimidas, minha mãe buscava compensação na volta do meu interesse pelos estudos. Alimentava a esperança de que ao entrar na faculdade eu esqueceria a política já que ela não tinha feito parte da minha vida até aquele momento e não fizera falta alguma.

 

Não era exatamente isso o que se passava na minha cabeça. De olho em todas as mudanças que se processavam por baixo do tapete da ditadura, sentia-me fortalecido e, pela primeira vez na vida, consciente de que tinha um papel social a desempenhar. O movimento sindical bastante combativo e agressivo que emergia nos centros urbanos estava relacionado a três questões essenciais: a autonomia sindical frente ao Estado e a independência diante dos partidos políticos; a negociação direta com os patrões, sem intervenção do Estado nas conversações salariais e as mobilizações de base para permitir criar as condições para um sindicalismo de massas, apoiado na democracia interna. Tudo de acordo com o que eu lia nas cartilhas sindicais. Planejava fazer jornalismo para dar continuidade à minha incipiente atuação política, mas a vocação falou mais alto. Naquele mesmo ano de 1978, entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Para os padrões de hoje eu estava bem atrasado. Comecei a faculdade aos vinte e quatro anos, quando já deveria ter concluído o curso e estar trabalhando na profissão escolhida. Isso, porém, não chegava a ser uma desvantagem. Conviver com pessoas mais jovens alimentava ainda mais a minha vontade de mudar o mundo.

 

Junto com esse novo sindicalismo que atingia principalmente o operariado das grandes indústrias metalúrgicas, surgiam também novos setores organizados sobre a base de um sindicalismo combativo como o dos professores universitários. Operário estava na crista da onda e defendê-lo como estudante engajado era o que mais ocorria dentro das universidades. Surgiu também uma gama de movimentos que se fortaleceram e ganharam expressão como movimentos negro, de gênero, direitos do consumidor, alas progressistas da Igreja Católica como a Teologia da Libertação e as pastorais, assim como as Comunidades Eclesiais de Base, o movimento pela anistia, movimentos de direitos humanos e muitos outros. Estava preparado o caldo de cultura que culminaria com a fundação do Partido dos Trabalhadores.



Links usados e sugeridos

















História do PT em 10 minutos: das origens ao golpe 

Novo sindicalismo

Teologia da libertação

Sindicalismo varguista

Paulo Freire e a Teologia da libertação

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

CAPÍTULO 17 - OLHOS VERDES

  Capítulo 17 - Olhos verdes - parte 1 O sol castiga o centro velho da cidade de São Paulo, apinhado de gente indo e vindo freneticamente. U...