Capítulo 9 – Um militante à deriva – Parte 1
O fim do meu calvário começou quando resolvi
pôr um ponto final na minha clausura e tomar finalmente um rumo na vida. Não
teria futuro como autodidata. Também não poderia continuar vivendo à margem da história.
As cicatrizes emocionais davam mostras de que só seriam fechadas se eu me
dispusesse a isso. Disposto a não me deixar vencer pela sina maldita trazida do
berço, passei a me interessar por política à procura de um papel social no
mundo.
O
regime militar já dava mostras de não estar tão garantido com as vitórias
sucessivas da ARENA, o partido governista sobre seu opositor. Tendo como foco a
repressão, a injustiça social e a desigualdade do modelo econômico, o MDB
conseguiu expressiva vitória no Senado nas eleições de 1974, durante o governo
Geisel, marcado pelo processo de distensão lenta, gradual e segura para
reimplantar a democracia no País. As vitórias do MDB em 1976 e 1978 iniciaram
uma onda de mobilizações populares menos sujeitas à repressão. Os movimentos
populares retomavam aos poucos a atuação política. A reboque de tudo isso, eu
me engajei de corpo e alma na luta das classes trabalhadoras, a despeito dos
meus olhos tão, tão verdes.
A
eclosão dos movimentos sociais a partir da segunda metade dos anos 1970 teve
como destaque o movimento dos trabalhadores, trazendo no seu bojo o “novo
sindicalismo”, marcado pela ruptura com as estruturas do “sindicalismo
varguista”, pautado nas alianças entre os líderes sindicais e o governo. Lá
estava eu, me posicionando contrariamente ao legado deixado por ele, o próprio
Getúlio Vargas, umbilicalmente preso à minha sina maldita. Em pouco tempo eu já
dominava todo o palavrório político e marcava terreno como militante das causas
populares, tentando com isso me desgarrar definitivamente do “pai dos pobres” e
da sua morte premeditada no dia em que vim ao mundo.
Principal
cenário desse novo sindicalismo, a região do ABC seria palco de uma série de
greves, como a de 1978. Surgia aí a figura de maior destaque no universo
sindical, o ex-torneiro mecânico Luiz Inácio da Silva, ou Lula. A novidade no
sindicalismo da época era a nova maneira de conduzir as negociações entre
patrões e empregados, com a autonomia do trabalhador sendo colocada em primeiro
plano e o embate e a resistência como as principais armas em contraposição ao
velho sindicalismo que privilegiava os acordos e a conciliação entre patrões e
empregados.
Recém-saído
do casulo que eu mesmo criara, e neófito na militância política, eu conciliava
minha atuação com os preparativos para o vestibular. Insatisfeita com o meu
repentino despertar de libertador das classes oprimidas, minha mãe buscava
compensação na volta do meu interesse pelos estudos. Alimentava a esperança de
que ao entrar na faculdade eu esqueceria a política já que ela não tinha feito
parte da minha vida até aquele momento e não fizera falta alguma.
Não era exatamente isso o que se passava na minha cabeça. De olho em
todas as mudanças que se processavam por baixo do tapete da ditadura, sentia-me
fortalecido e, pela primeira vez na vida, consciente de que tinha um papel
social a desempenhar. O movimento sindical bastante combativo e agressivo que
emergia nos centros urbanos estava relacionado a três questões essenciais: a autonomia
sindical frente ao Estado e a independência diante dos partidos políticos; a negociação
direta com os patrões, sem intervenção do Estado nas conversações salariais e as
mobilizações de base para permitir criar as condições para um sindicalismo de
massas, apoiado na democracia interna. Tudo de acordo com o que eu lia nas
cartilhas sindicais. Planejava fazer jornalismo para dar continuidade à minha
incipiente atuação política, mas a vocação falou mais alto. Naquele mesmo ano
de 1978, entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Para os padrões
de hoje eu estava bem atrasado. Comecei a faculdade aos vinte e quatro anos,
quando já deveria ter concluído o curso e estar trabalhando na profissão
escolhida. Isso, porém, não chegava a ser uma desvantagem. Conviver com pessoas
mais jovens alimentava ainda mais a minha vontade de mudar o mundo.
Junto
com esse novo sindicalismo que atingia principalmente o operariado das grandes
indústrias metalúrgicas, surgiam também novos setores organizados sobre a base
de um sindicalismo combativo como o dos professores universitários. Operário
estava na crista da onda e defendê-lo como estudante engajado era o que mais ocorria
dentro das universidades. Surgiu também uma gama de movimentos que se
fortaleceram e ganharam expressão como movimentos negro, de gênero, direitos do
consumidor, alas progressistas da Igreja Católica como a Teologia da Libertação
e as pastorais, assim como as Comunidades Eclesiais de Base, o movimento pela
anistia, movimentos de direitos humanos e muitos outros. Estava preparado o
caldo de cultura que culminaria com a fundação do Partido dos Trabalhadores.
Links usados e sugeridos
Paulo Freire e a Teologia da libertação
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