Capítulo 11 - É noite, tudo se sabe... Parte 1
Era uma
noite como tantas outras, mas algo de novo pairava no ar naquela quarta-feira,
quatro de outubro de 1988. O dia seguinte seria um marco na história política
do País. Depois do fiasco da posse do primeiro presidente civil após penosos
anos de ditadura militar, quando assumiu um vice não de todo distanciado do mesmo
regime, o País começava a ser regido por uma nova constituição.
Do
assento pouco confortável, colocado milimetricamente entre a porta e o balcão
de um pequeno boteco na esquina da Rua Frei Caneca com a Marquês de Paranaguá,
Rodrigo comia um “x” qualquer coisa, pensando no dia seguinte. Passava das dez
da noite, aquele lanche chinfrim acompanhado de Coca-Cola era o almoço do dia e
ele estava com a cabeça tão voltada para os últimos acontecimentos que mal
reparava nas criaturas que lhe faziam companhia no pequeno boteco. Olhos
atentos no jornal, ele acompanhava os preparativos para as solenidades de promulgação
da nova Constituição.
Não teve
como deixar de reparar nos olhos verdes do senador Ulysses Guimarães,
presidente da Constituinte. Aquele velho líder da oposição dizia estar se
sentindo como uma noiva na véspera do casamento, cheio de ocupações e
emocionado. Dizia ainda que, se a Constituição não tivesse defeitos, seria a
Constituição dos anjos, não seria para nós. O vigor daquele homem era
fantástico. Ele participou da inauguração do Bosque da Constituinte, onde cada
constituinte teria uma árvore com seu nome. Ulysses plantou uma muda de
pau-ferro. José Sarney, o presidente da República, plantaria uma muda de
pau-brasil, mas desistiu de comparecer à festa. Estava pisando em ovos, talvez
com medo de que a nova Constituição pudesse anular atos do seu governo.
A festa
de promulgação marcada para o dia seguinte teria duas convidadas de honra:
Sarah Kubitschek, viúva de Juscelino, comemorando 80 anos, e Maria Mercês
Tavares Correia, 84 anos, mãe da deputada Cristina Tavares, de Pernambuco. Atento
à leitura do jornal, Rodrigo nem percebe a chegada do Radialista. Enquanto o homem se acomoda no seu banco cativo,
Rodrigo analisa as palavras das convidadas de honra. Sarah diz que esta nova
Constituição lhe traz “alta dose de esperança no Brasil, as coisas vão mudar”.
Maria Mercês, ao contrário, declara que, mesmo com a nova Carta, vê tudo
sombrio no seu País. “É um momento de interrogação. A lei não pode garantir paz
e tranquilidade”.
Depois
do primeiro trago noturno, o Radialista
cumprimenta todos os presentes e repara em Rodrigo, compenetrado na leitura. Quando
o rapaz levanta a cabeça e tira o olhar do jornal, ele faz um aceno e dá uma
piscadela maliciosa.
– Novo
aqui, garoto? É isso aí... intelectual. Se atualizando na hora que tá todo
mundo entregando os pontos e pensando no dia seguinte. Gente nova é assim
mesmo...
– Não
sou assim tão novo, já passei dos trinta.
– E a
vida não começa aos quarenta? Cê tá novo ainda garoto. O que tem aí na nossa política?
A nova constituição foi aprovada, não é mesmo? Já dei minha pescoçada nos
jornais da banca, teve um deputado do PT que, ao contrário do partido, aprovou
a redação final. Um cara lá de Minas Gerais, qual o nome dele, garoto?
– José Paulo Velozo.
– Isso
mesmo, Zé Paulo Velozo. Mineiro, gente boa, uai. Teve bomba lá, né?
– Foi no
Teatro Nacional, um alarme falso. Os policiais não encontraram nada, nenhuma bombinha
de São João. Ano passado teve um “badernaço” lá...
– Qual
a sua idade, garoto?
– Trinta
e quatro.
– Nessa
idade a gente acredita em muita coisa... o tempo vai passando, a gente ficando
mais velho e descrendo cada vez mais de tudo... Cê faz o quê?
– Sou
arquiteto.
– É
mesmo? Então você sabe por que escolheu ser arquiteto...
– Peraí,
essa eu já conheço. O cara escolhe ser arquiteto porque não foi macho bastante para
ser engenheiro nem muito afeminado pra ser decorador.
– É
isso, você sabe das coisas.
– Mas
não é o meu caso. E, ao contrário da piada, é preciso ser macho mesmo para ser arquiteto.
Ou você acha que o Oscar Niemeyer e o Lúcio Costa não tiveram de ser muito
macho para construir Brasília no meio do deserto?
– E
comunista, ainda por cima!
– Só o
Niemeyer. Comunista convicto, só a morte vai separá-lo do comunismo.
– É
mesmo, comunista demora até para morrer! Pelo jeito, ele e o Fidel vão viver uns
duzentos anos!
A noite
avança e eles continuam no boteco. Duas garrafas de cerveja vazias, um copo
cheio e outra garrafa pela metade. Está chegando a hora em que o movimento no
boteco aumenta e a fauna humana começa a variar. Rodrigo mora num pequeno
apartamento de um quarto, sala, cozinha e banheiro ali mesmo na Frei Caneca,
pouco antes da esquina da rádio etílica. No outro lado da rua, bem debaixo da
sua janela, fica um hotelzinho muito procurado pelos trabalhadores da
construção civil para as suas noitadas de orgia. Depois da meia-noite, as
garotas vão à caça de programas. Bem mais discretas do que as que tomam conta
da Rua Augusta. O boteco é um ponto de encontro da oferta e da procura. Rodrigo,
porém, não se interessa por esse mercado do sexo, suas alternativas para suprir
os desejos da carne são bem maiores do que as dos operários da construção.
Nutre, no entanto, uma atração muito forte pelos movimentos noturnos da cidade.
Passando
a esquina, a Frei Caneca faz uma curva acentuada à esquerda, cruza a Augusta e
continua como Caio Prado. Ali fica o parque Augusta, uma ilha verde no meio do
concreto. Rodrigo costuma andar a pé por aquela região e pelo centro de São
Paulo, sempre à noite. Sem medo nem preocupação com a segurança. Aprecia a
sensação de liberdade ao caminhar pelas calçadas, pelo asfalto, prestando
atenção em cada detalhe, nos personagens da noite, nos mendigos que perambulam
em busca de abrigo, nas prostitutas em busca de trabalho e nos homens em busca
de prazer.
Aos
dezenove anos ele foi vítima de um assalto e quase perdeu a vida. Ficou muito
tempo traumatizado, com medo de sair de casa mesmo durante o dia. Com a morte
de seu pai, dois anos depois, o problema se agravou. Vencer essa síndrome não
foi tarefa fácil porque ele já carregava um histórico psicótico complicado, um quadro
esquizofrênico originado na infância. Naquela época não era normal os pais
darem atenção a coisas desse tipo, mesmo por que não havia como eles saberem o
que se passava na cabeça de seus filhos. Se em famílias de classe média já era
difícil, que dizer nas de baixa renda.
Por
conta desses acontecimentos que se somaram ao seu complexo de perseguição, o
início da vida adulta foi muito prejudicado e, por pouco ele não perdeu a
vontade de viver e de melhorar de vida. Deixou a escola logo que concluiu o
científico, mas não perdeu a curiosidade e o desejo de aprender coisas novas.
Quando as sequelas diminuíram a influência nas suas atitudes e relacionamentos,
ele entrou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e, resistindo aos
apelos da mãe, trocou Diadema por São Paulo. Depois de formado continuou
morando e trabalhando na capital, sua nova paixão.
O dono
do boteco contabiliza mais um conhaque para o Radialista, limpa o balcão e lança um olhar na direção de Rodrigo
que lê o jornal esquecido do copo e da garrafa. “Hora esquisita para ler jornal”,
pensa em voz alta. Do outro lado do balcão o Radialista sente os efeitos dos
conhaques tomados até ali. Seu espírito se mostra cada vez mais melancólico.
No ar, a ZYK 35, rádio Mayrink Veiga. É
noite, tudo se sabe... A ouvinte Maria Lúcia, do Tremembé, oferece esta música ao
namorado Evandro, do Tatuapé, com muito amor e preocupação: “De noite, eu rondo a cidade a te procurar,
sem encontrar. No meio de olhares procuro, em todos os bares, você não está. Volto
pra casa abatida, desencantada da vida. O sonho, alegria me dá, nele você
está...”
Todos se
deixam levar pela voz grave do Radialista, ainda pouco maltratada pelo álcool.
Sem parar de falar, ele encosta a cabeça na parede, puxa o copo de conhaque e
fecha os olhos como se estivesse dormindo.
A temperatura está na casa dos vinte e
cinco graus, a cidade dorme esquecida do tempo. Poucos carros transitam pelo
centro e os moradores do Parque Novo Mundo esperam o amanhecer. Na avenida
Paulista, a torre da Gazeta ilumina a passarela, ciclistas solitários pedalam
na direção da Consolação e no viaduto do Chá, mendigos cospem nos pratos que
não comeram. Continue ligado na ZYK 35, rádio Mayrink Veiga. É noite, tudo se
sabe... Leonildo, do Jaguaré, oferece esta música do nosso gênio, Cartola, a
todos os prepotentes e insensíveis que não aprenderam a dar valor ao sofrimento
alheio: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor. Se
hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca a flor.” É noite, tudo se
sabe...
Duas
semanas depois e com o País já sendo regido pela nova Constituição, Rodrigo sente
o cansaço da noite anterior, os olhos pesam, ele mal consegue prestar atenção
no trabalho. Deixa a mesa e vai até a cozinha tomar mais um café. Na cozinha
estreita, ele puxa um banquinho e fica ali sentado, tomando o café e pensando
no Radialista. Desde que mudou para o
apartamento e começou a frequentar o boteco, Rodrigo pegou o hábito de parar
ali antes de chegar em casa. Toma uma cerveja, um café, come um lanche ou o que
seja, fazendo de conta que o motivo principal de estar ali não é o Radialista. Considera o homem um poeta
solitário, um eremita prostrado sob o peso da cidade ou do mundo que carrega
dentro de si. Assim como o Radialista,
Rodrigo possui a impressionante sensibilidade de captar os dramas escondidos em
cada cantinho da cidade e na alma do seu povo, e isso não o deixa feliz. Ele
sofre, e tem consciência do seu sofrimento. Talvez o Radialista também sofra e busque o remédio para sua melancolia na
bebida e na sua rádio imaginária.
No final
da noite, ele caminha de volta para casa. Como sempre, sem pressa, reparando em
tudo o que encontra pelo caminho. Na calçada da Praça da República, contempla o
silêncio e a escassez de gente e de carros. Passa por uma viatura da polícia
estacionada sob as árvores. Acena para os policiais, conhecidos da noite, enquanto
caminha pela avenida Ipiranga, em direção ao colégio Caetano de Campos. Ouve a
sirene de uma ambulância, mas não consegue saber de onde ela vem. Os poucos
carros que transitam pela avenida diminuem a velocidade esperando o farol verde
no cruzamento com a São Luiz. Ao se aproximar do cruzamento, Rodrigo ouve o som
da sirene cada vez mais próximo e tem um pressentimento. A ambulância está
passando por trás do colégio. O farol abre no sentido da Ipiranga, mas os
carros não avançam por causa da ambulância que começa a aparecer por trás do
colégio e desponta no cruzamento. De repente, um carro também em alta
velocidade freia, mas não consegue parar. A ambulância chega primeiro no centro
do cruzamento e é atingida pelo automóvel. O impacto faz com que o carro pare
imediatamente no meio da pista enquanto a ambulância é arremessada para longe,
capotando por três vezes seguidas até parar com as rodas voltadas para o céu.
Paralisado,
Rodrigo vê toda a cena em câmera lenta, como se fosse um filme. O motorista
causador do acidente desce do carro, atordoado, e é socorrido por algumas
pessoas enquanto muitas outras aparecem surgidas do nada e cercam a ambulância.
Rodrigo se aproxima, contendo o medo de encarar o sangue, a morte. A agonia
comprime o seu peito, causando um mal-estar incontrolável. Policiais conseguem
abrir as portas da ambulância e Rodrigo não acredita no que vê. Da ambulância
rola o corpo gigantesco de Dona Filomena, com seu vestido branco manchado de
sangue. Atrás dela, seu Duca, com a arma ainda fumegante na mão, gira o corpo e
aponta o revólver para a outra pessoa de bruços na maca. O homem se vira e
Rodrigo percebe que é seu pai. Transtornado, ele se afasta da ambulância
sentindo o cheiro de asfalto queimado, o barulho da sirene que não cessa e a
confusão de gritos vindos do redemoinho de gente.
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