quinta-feira, 7 de julho de 2022

CAPÍTULO 11 - É NOITE, TUDO SE SABE... - PARTE 2

 

Capítulo 11 - É noite, tudo se sabe... - Parte 2



Paralisado, Rodrigo vê toda a cena em câmera lenta, como se fosse um filme. O motorista causador do acidente desce do carro, atordoado, e é socorrido por algumas pessoas enquanto muitas outras aparecem surgidas do nada e cercam a ambulância. Rodrigo se aproxima, contendo o medo de encarar o sangue, a morte. A agonia comprime o seu peito, causando um mal-estar incontrolável. Policiais conseguem abrir as portas da ambulância e Rodrigo não acredita no que vê. Da ambulância rola o corpo gigantesco de Dona Filomena, com seu vestido branco manchado de sangue. Atrás dela, seu Duca, com a arma ainda fumegante na mão, gira o corpo e aponta o revólver para a outra pessoa de bruços na maca. O homem se vira e Rodrigo percebe que é seu pai. Transtornado, ele se afasta da ambulância sentindo o cheiro de asfalto queimado, o barulho da sirene que não cessa e a confusão de gritos vindos do redemoinho de gente.


     Ele chega no boteco com o coração acelerado. Senta no banco de sempre. O dono do boteco percebe a palidez no rosto dele. 


 – Aconteceu alguma coisa, garoto?

 – Nada... me dá um conhaque! 

 – Tem certeza? Você não é de beber. 

     – Deixa o garotoresmunga o Radialista, amuado no seu canto. O dono do bar pega um conhaque da pior qualidade – Assim você ofende o rapaz, tem coisa melhor aí. Traz um Presidente, se ele não puder pagar, eu pago. Bebe aí, garoto, afoga suas mágoas!


Rodrigo toma o primeiro gole com avidez e quase vomita. 


     – Devagar, garoto, isso aí não é cerveja e não é assim que se bebe. Se quiser beber, tem de aprender a beber. Sem pressa, sinta sua garganta ser aquecida lentamente. Tem que dar uma boa pausa entre um gole e outro, afinal você não é nenhum sobrevivente do deserto na frente de um copo d’água. Bebe aí e escuta o rádio, porque é noite, tudo se sabe...


     “Meu mundo caiu e me fez ficar assim. Você conseguiu, e agora diz que tem pena de mim”


     Rodrigo encara o Radialista tentando imaginar se o homem tem noção do que está se passando na sua cabeça depois daquela alucinação na frente da ambulância. Sentado naquele cantinho, bebendo, falando coisas desconexas, cantando e observando cada um dos frequentadores da casa, o Radialista parece adivinhar o que se passa no coração de cada um. Quem sabe ele não é um bruxo, ou então, a encarnação de Gabriel, seu libertador? Poucas pessoas têm a sensibilidade de Rodrigo, muito menos a do Radialista. Só que, desta vez, o Radialista se engana ao pensar que a dor de Rodrigo é causada por alguma desilusão amorosa. Ele sente culpa, medo, angústia, saudade...


     Estamos na ZYK 35, rádio Mayrink Veiga. É noite, tudo se sabe... Nossa ouvinte, Maria das Dores, de Araçoiaba da Serra ligou pedindo a música Maria, Maria, de Milton Nascimento. Ela gosta dessa música porque a faz lembrar de que tem de ser sempre forte, compassiva e disposta a ajudar os outros, não importando que esteja se sentindo fraca, como agora. Antes de ouvir a música, cara Das Dores, lembre-se que você não é a salvadora do mundo, não se pode ser forte o tempo todo, há momentos em que nos sentimos fracos e isso não é covardia, é apenas a lembrança de que somos humanos e de que o peso da vida é muito maior do que sonhamos poder aguentar. Seja forte sempre que for necessário, mas não se culpe quando a fraqueza vier, confie que quando você se sentir fraca, haverá sempre alguém mais forte para lhe apoiar, se não houver ninguém, com certeza Deus estará ali esperando você erguer os olhos na direção dele e pedir ajuda... É noite, tudo se sabe... 

   

     No silêncio do seu quarto, Rodrigo relembra as palavras do Radialista. “Será que ele falou para mim? ” Pensa na sua mãe, nos irmãos, na vida dura que eles continuam levando, pensa também na sua própria vida. Está sozinho, economizando cada centavo para se manter naquele cantinho, mas ainda sem visão de futuro. “Será que eu sou um idealista, sem ação? Por que sofro tanto com o sofrimento dos outros? Por que me apego tanto a mendigos, bêbados, prostitutas, meninos de rua e mais uma porção de pirados espalhados pela cidade? Sofro por eles, mas nada faço por eles. Será que tenho medo de um dia me tornar um deles? ”


     Adormece sem respostas. Acorda atrasado e com dor de cabeça, coisa que dificilmente acontece com ele. Toma um banho rápido, coloca uma camiseta e uma calça jeans e desce com o passo acelerado em direção à padaria da Rua Martins Fontes. Não gosta de chegar atrasado, mas detesta comer correndo. A padaria, como sempre, está cheia. Ele pega seu café e pão com manteiga e senta-se na mesa ao lado da janela. Dali pode observar o movimento na rua. Revive as impressões da noite anterior. Que alucinação foi aquela? Melhor esquecer e esperar que isso não aconteça mais. Tenta se convencer de que ter saído de lá rapidamente foi a melhor escolha, não tinha como ser útil naquelas circunstâncias. Quem sabe a ambulância estivesse vazia e o motorista, apressado, tenha acionado a sirene de propósito? Quem sabe?


     Envolto em seus pensamentos, não percebe o que se passa no outro lado da rua. Quando se dá conta, vê uma senhora caída na calçada, circundada por um grupo de pessoas. Parece que a mulher tropeçou ou sentiu-se mal e acabou caindo. Termina o café e caminha até o local. A mulher acabou de ser levantada por dois homens. Um deles, o Radialista. Rodrigo fica confuso e sem ação. Estranho vê-lo à luz do dia, sóbrio e prestativo. Já recuperada, a mulher agradece, o grupo se dispersa e ela segue seu caminho. Ficam apenas os dois. 


     – Pessoas idosas não deviam andar sozinhas pelas ruas do centro, você não acha, garoto?

 – É, acho que não...

 – Você está bem, garoto? 

 – Claro, estou atrasado para o trabalho...

 – Você não é o único, nesta cidade todo mundo está sempre atrasado.


     Despedem-se e cada qual segue o seu caminho. Rodrigo, ainda tentando entender como uma pessoa pode ter duas personalidades, uma à noite outra durante o dia. “Ele não me reconheceu. Será que não? Ele pode ter me reconhecido mas preferiu não demonstrar. Fiquei sem saber o que dizer, era como se fosse outra pessoa. Poderia ter perguntado o nome dele, onde ele mora, o que faz. Será mesmo? Talvez o melhor seja deixar como está, o homem que eu acabo de ver não era o Radialista, era um pedestre a mais caminhando pelo centro da cidade”.


Rodrigo não consegue esquecer do Radialista durante todo o dia. Fica imaginando mil vidas para ele. “É casado, tem dois filhos e trabalha numa concessionária de carros... solteiro, morando sozinho num apartamento próximo ao trabalho... separado, uma neta de cinco anos que ele faz questão de buscar todo dia na escola... funcionário público, nas horas vagas trabalha numa pequena rádio de bairro... começou a beber por causa de uma decepção amorosa...” Nada, porém, se encaixa no perfil do Radialista.

     



Links usados e sugeridos













30 anos da Constituição de 1988

Antecedentes da Constituição de 1988

Fundação Ulisses Guimarães


 



Nenhum comentário:

Postar um comentário

CAPÍTULO 17 - OLHOS VERDES

  Capítulo 17 - Olhos verdes - parte 1 O sol castiga o centro velho da cidade de São Paulo, apinhado de gente indo e vindo freneticamente. U...