quinta-feira, 28 de julho de 2022

CAPÍTULO 12 - QUERO A PAZ DE CRIANÇA DORMINDO


Capítulo 12 - Quero a paz de criança dormindo


 

Rodrigo sabe que não pode deixar o homem ali naquele estado, tem de levá-lo para casa, seja onde for. Fuça os bolsos dele para ver se encontra documentos ou algum comprovante de endereço. É surpreendido por uma viatura da polícia e em poucos minutos é encostado na parede, revistado e, por pouco, não recebe os carinhos costumeiros dos policiais. Acharam que ele estava assaltando o Radialista quando só queria ajudá-lo. Depois de tudo explicado eles são encaminhados a um pronto-socorro. O Radialista é levado para um quarto porque o caso é grave, talvez coma alcoólico. Na verdade, não chegava a tanto, o problema maior era a pressão alta.

 

Rodrigo passa noite inteira ao lado da cama do seu Antenor da Silva, o Radialista. Ele já tem a ficha completa do seu Antenor. É viúvo, pai de três filhos que não moram com ele, talvez casados ou simplesmente abandonaram o pai. Ele mora num prédio próximo à Alameda Nothmann, cuja janela fica de frente para o Minhocão. Durante o dia ele mal consegue dormir por causa do barulho dos carros, mas isso não o impede de frequentar o boteco da Frei Caneca ou talvez outros espalhados pelo centro da cidade. Seu Antenor é tipo vampiro ou coruja, criatura da noite. Depois que o paciente recebe alta, Rodrigo faz questão de levá-lo para casa, mesmo ele insistindo que já está bom e que pode se cuidar sozinho. Pegam um táxi e vão direto para o covil do Radialista, no Minhocão.

 

O apartamento é extremamente pequeno e escuro, a janela vive fechada por causa da poluição. Rodrigo escancara as duas venezianas para não sufocarem lá dentro. Acomoda-o na cama e vai preparar alguma coisa para comerem. A cozinha é pequena, mas bem arrumadinha. Enquanto equilibra as panelas no pequeno fogão de duas bocas, ouve as músicas que vêm do quarto do Radialista. Apaga o fogo e vai até lá. Ele fica de queixo caído com o toca-discos e a incrível quantidade de LPs e compactos simples e duplos caprichosamente guardados em pilhas separadas por cantores e épocas. Tudo MPB, com algumas raridades.

 

Rodrigo passa a tarde ouvindo as histórias do seu Antenor e da sua eterna paixão pelo rádio e pela música brasileira. Começou a trabalhar aos dezoito anos na antiga Rádio Mayrink Veiga, uma emissora carioca fundada em 1926 e que foi líder de audiência na década de 1930, reduto de novos talentos e ícones da “Era do Rádio”. Foi lá que estrearam Carmem Miranda e sua irmã Aurora. Ele conta que em 1961 a Rádio Mayrink Veiga participou da chamada Cadeia da Legalidade, uma rede de rádios nacionais organizada por Leonel Brizola para defender a democracia, o que posteriormente serviria como justificativa pelo golpe militar para fechá-la em 1965.

 

O garoto Antenor começou sua carreira em 1937 separando os discos que seriam utilizados nas transmissões diárias. Com o surgimento da Rádio Nacional, também no Rio de Janeiro, a Mayrink Veiga perdeu seu posto. Foi na Rádio Nacional que o jovem Antenor começou a atuar como radialista, graças à sua voz privilegiada. Outra coisa que chama a atenção de Rodrigo é o fato de a Rádio Nacional ter iniciado como empresa privada em 1936 e depois ser estatizada por “ele”, Getúlio Vargas, em 1940, durante o Estado Novo. Getúlio a transformou na rádio oficial do governo brasileiro. Com o avanço da televisão, o rádio foi perdendo a importância que tinha. O Radialista pendurou o microfone em 1978, aos 59 anos. Hoje ele se mantém com o dinheiro de uma pequena aposentadoria. A vitrola e a coleção de discos são herança do seu tempo de locutor. Oficialmente, esse tempo acabou, mas não na cabeça dele.


– Que susto você deu, hein seu Antenor! Tá querendo se matar?

– Você se preocupa à toa, garoto, foi só um mal-estar.

– Causado pelo excesso de bebida. O senhor precisa moderar, já não é mais nenhum garoto.

– Ai, meu Deus, o que eu fui arrumar agora, um enfermeiro de plantão?

– O senhor mora sozinho mesmo?

– Eu e Deus, é o que basta!

– E se o senhor passar mal de novo, quem vai cuidar?

– Já estou com 69 anos... meia nove. Já vivi bastante. Esse mundo não tem mais nenhuma novidade pra mim...

– E seus parentes?

– Parente é pior que dor de dente! Parente é que nem paisagem: quanto mais longe, mais bonito fica! Não preciso de parente nenhum!

– E seus filhos?

– Tudo casado. Cada qual com seus problemas, vão esquentar a cabeça comigo pra quê?

– O senhor não sente solidão?

– Mas quem não sente, meu filho? Quem nessa cidade de doido não sente solidão? A minha eu resolvo com a música. Todos esses discos que você está vendo aí vieram da Mayrink Veiga e da Rádio Nacional. A maioria eu ganhei dos próprios cantores. Tudo autografado, pode ver: Emilinha Borba, Francisco Alves, Marlene, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Dolores Duran, Silvio Caldas, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins... é tanta gente, garoto, que eu não ia conseguir falar o nome de todo mundo. Esses astros e estrelas conviviam comigo todos os dias, como se eles fossem a minha família. Minha vida toda foi voltada para a música. Então, quando eu sinto a solidão rondando, ponho quantos discos precisar na vitrola e passo o dia ouvindo e matando a saudade daquele tempo bom que não volta mais. Acaba com a solidão? Não, mas faz a gente conviver com ela sem sofrimento. Por isso, você deve fazer tudo que pode quando é jovem, tem de viver com intensidade, menino, porque depois, quando a velhice chegar ai daquele que não tiver lembranças boas ou mesmo ruins. A pior coisa para um homem na minha idade é não ter do que se recordar...

– Puxa, o senhor deve ter muita história!

– O pior, é não ter para quem contar... é isso que dói na solidão, não ter pra quem contar nossas recordações. Imagina o que seria de mim se não tivesse esses discos? Quando eu pego um compacto da Dalva de Oliveira, me vem na cabeça toda disputa para ver quem ganhava o título de Rainha do Rádio. Você por acaso sabe o que era isso?

– Eu só lembro o quanto meu pai gostava de ouvir rádio. Ele tinha um grandão que comprou para ouvir a Copa do Mundo de 1958, mas deve ter tido muitos outros antes daquele. Quando ele estava em casa, estava sempre ouvindo o rádio. Ouvia muita música também, tudo pelo rádio.

– Então ele deve ter acompanhado as disputas memoráveis entre Emilinha Borba e Marlene, Linda Batista, Dircinha Batista, Ângela Maria, Doris Monteiro... um punhado de divas, garoto!

 

O Radialista parece renascer depois de quase ter sucumbido na noite passada. A tarde avança e eles continuam conversando e ouvindo muita, muita música, como se estivessem no estúdio da Mayrink Veiga ou da Rádio Nacional. Durante todo o tempo que Rodrigo passou naquele pequeno apartamento de janela voltada para o minhocão, o Radialista não bebeu sequer uma gota de álcool. Foi a primeira vez que Rodrigo viu aquele homem feliz. Ele contou toda a história do concurso Rainha do Rádio, um concurso criado pela Associação Brasileira de Rádio com o objetivo de arrecadar fundos para a construção de um hospital. As transmissões eram todas feitas em auditórios repletos, com torcidas mais eufóricas do que as de futebol. A coisa era muito séria e gerava até rivalidades históricas entre as cantoras, exploradas pelos patrocinadores. Quem votava eram os ouvintes, em cédulas que vinham na Revista do Rádio. A primeira premiação foi em 1937 no Iate Laranjeiras, um barco carnavalesco. Linda Batista foi a campeã e manteve o título durante onze anos! 

– Em 1949 as cantoras Marlene e Emilinha Borba tiveram uma das maiores rivalidades da história. E como eu me dava bem com as duas, ficava sempre em cima do muro, sem jeito de dizer que torcia por uma ou pela outra. Para você ter uma ideia, a Antarctica estava lançando o Guaraná Caçulinha e entregou um cheque em branco pra Marlene para que ela comprasse quantas revistas fossem necessárias. Cada revista significava um voto. Ela foi eleita com quase 530.000 votos! A Emilinha acabou ficando em terceiro lugar, atrás da Ademilde Fonseca, outra chegada minha!

– Pelo jeito o senhor tinha cartaz com a mulherada, hein!

– Ah, mas aquele era um outro tempo, bem diferente de hoje. Um homem para chegar numa mulher tinha que ter muito mais do que lábia. Havia muito respeito, elegância, educação. Tinha que ter classe, você me entende? Não era essa esculhambação de hoje, até o carnaval era comportado. O que não quer dizer que não tinha as safadezas. Safadeza sempre teve e sempre vai ter, mas era tudo muito escondido e controlado. A Dalva de Oliveira e o Herivelto Martins, por exemplo, tiveram muitas brigas por causa de traição, a maioria da parte dele, o bicho era mulherengo mesmo; mas ela também aprontou das suas.

 

Ao perceber que seu Antenor está entrando numa espécie de melancolia, Rodrigo procura mudar de assunto, o que não é fácil. O Radialista tem uma espécie de blindagem da sua vida privada, uma área proibida onde ele não está autorizado a entrar.

 

Depois desse dia, Rodrigo ficou algumas semanas sem ver o Radialista. Chegou a ter aintenção de fazer parte da vida dele, mas logo desistiu. Havia ali uma barreira intransponível. Quando se reencontraram no boteco da Frei Caneca foi como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele colocou sua rádio no ar como sempre fazia. Rodrigo era mais um ouvinte, entre tantos que se encostavam no balcão do boteco para comer um lanche, tomar umas cervejas ou para encher a cara e esquecer a crueldade do mundo.

 

Só um ano depois, Rodrigo voltou ao boteco. Esperava encontrar o Radialista no mesmo cantinho, dando conselhos aos ouvintes e tocando as músicas que melhor preenchiam a solidão de cada um deles. Sua rádio, porém, não existia mais, assim como ele. Morrera vítima de um enfarte fulminante. O zelador do prédio encontrou-o deitado na cama do apartamento com a janela voltada para o minhocão. Parecia estar sorrindo. Na vitrola, Dalva de Oliveira pedia:

 

Hoje, eu quero a paz de criança dormindo, e o abandono de flores se abrindo. Para enfeitar a noite do meu bem...

 

A notícia abalou Rodrigo de tal forma que ele resolveu ir para casa com aquela amargura no peito. A dura sensação de perda, mais uma na sua vida. Seu namoro com Anelise havia entrado naquela fase em que ambos percebem a queda do fascínio e a mesmice da rotina. Querem terminar, mas não sabem como. Toda separação, por mais desejada que seja, deixa sequelas emocionais e o que não faltava naquele momento eram sequelas emocionais. O Radialista se fora da mesma forma inesperada que aparecera. Difícil não reconhecer o apego emocional, mesmo que ambos nunca admitissem. Demorou a dormir imaginando o pobre homem morrer sozinho num pequeno apartamento quase que pendurado no minhocão. Morreu sorrindo, a melhor forma de morte, rápida, talvez indolor, um simples passar para o outro lado ao som de Dalva de Oliveira. Seu Antenor poderia ser seu pai, seu segundo pai, caso tivesse conseguido entrar um pouco mais na vida daquele homem solitário. Mas a sabedoria do homem simples não lhe deu esse espaço. O Radialista não queria, não admitia se apegar mais a ninguém, nem deixar que se apegassem a ele. Sua amada amante derradeira foi a música, talvez a única verdadeira e que esteve ao seu lado no último momento. Quando Rodrigo acordou, o sol nascia da mesma forma de sempre e a vida prosseguiria como sempre fazia a cada manhã. As horas se sucederiam, as noites se sucederiam, os dias e anos se sucederiam na marcha inexorável do tempo, deixando vidas pelo caminho e trazendo novas, num constante recomeçar.



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