Capítulo 13 - Enfim, Vanessa! - Parte 1
Anelise foi uma aventura
passageira, durou pouco mais de um ano. Deixou marcas, porém, não profundas.
Segui minha vida como um cidadão pacato, um arquiteto como tantos outros
tentando se projetar num mundo cada vez mais competitivo. Trabalhava num escritório
de arquitetura que desenvolvia projetos para revitalização de zonas urbanas em
grandes centros populacionais. Tornei-me definitivamente uma pessoa noturna.
Vagava pela cidade todas as noites e madrugadas em busca não sei do quê. No dia
seguinte chegava no trabalho de óculos escuros para esconder as profundas
olheiras. Ninguém ligava, aquilo parecia até conferir um certo charme à minha
figura.
Eu estava desenvolvendo um projeto para Potsdam, a cidade alemã mundialmente conhecida por seu legado histórico como residência dos reis da Prússia. Localizada a sudoeste de Berlim, no lado ocidental, em meio a uma região de florestas e lagos e às margens do rio Havel, a cidade possuía um grande número de parques e palácios belíssimos. Todo o conjunto englobava quinhentos hectares de parques e cento e cinquenta edifícios erguidos entre 1730 e 1916. A cidade estava em vias de ser nomeada Patrimônio Cultural da Humanidade.
Capital e cidade mais populosa do estado federal de Brandemburgo,
possuía três universidades públicas e mais de trinta instituições de pesquisa.
Cerca de quinze por cento dos seus habitantes eram estudantes. Nosso desafio
era desenvolver um projeto arquitetônico que harmonizasse o moderno com as
construções centenárias. Trabalho nada
fácil, considerando que estávamos concorrendo com mais dois escritórios, um de
Nova York e o outro de Madri. Para complicar, a situação política estava
acirradíssima. O processo de colapso da antiga União Soviética estava
originando diversas manifestações nas duas partes da Alemanha. O povo
reivindicava a destruição do muro de Berlim, endossados pelo Papa João Paulo
II, pelo presidente Ronald Reagan e pela “Dama de Ferro”, Margareth Tatcher.
Durma-se com um barulho desses!
Exatamente o que eu não conseguia, debruçado sobre o meu projeto e sem conseguir achar a melhor forma de finalizá-lo. Como não chegava inspiração, saí em busca dela pelas ruas de São Paulo, numa noite fria de 9 de novembro de 1989. Fui parar num bar alemão movimentadíssimo. Encontrei uma mesa de frente para um telão. Para meu espanto, não estava passando nenhuma partida de futebol.
Centenas de pessoas munidas de
marretas e outras ferramentas detonavam parte do muro em um protesto
televisionado para o mundo todo. Eu tinha saído de casa em busca de inspiração
e estava assistindo ao vivo o início da queda do Muro de Berlim. Era mais do
que a final do campeonato alemão ou de uma Copa do Mundo para aqueles
conterrâneos que lotavam o bar, gritando e consumindo muita cerveja. Fiquei
empolgado junto com eles, afinal estava caindo um ícone do comunismo. Não só
isso, a monstruosa barreira física que dividiu uma cidade, separou famílias por
quase trinta anos e causou a morte de oitenta pessoas que tentaram atravessá-la.
Eu
estava ali curtindo aquela festa como se fosse minha, quando, no meio da
alemãozada vi a mulher que procurava há milênios! Estava em pé junto
a uma mesa repleta de descendentes germânicos tão à vontade quanto um elefante
numa loja de cristais. Sua beleza era indescritível; por isso não vou me dar ao
trabalho de descrevê-la. Abro apenas uma exceção aos cabelos quase ruivos
e aos olhos castanhos. Deslumbrantes! Instantaneamente apaixonado, abandonei
meu chopp e fui ao encontro dela. Crucifico quem ousar não acreditar em amor à
primeira vista!
– Oi, está sem
mesa? – na falta de frase melhor saiu essa aí. O
importante era começar antes que algum alemão eufórico o fizesse.
– Não – ela respondeu, aparentemente sem intensão alguma de matar a conversa no nascedouro – cansei de ficar sentada, só isso.
– Está sozinha? – a pergunta fatal!
– Digamos que sim...
– Como assim, não tem certeza? Eu, por exemplo, sei que estou sozinho.
– E, pelo jeito, não está gostando – ela falou já com um ar de quem estava entrando na brincadeira. O brilho dos olhos castanhos não negava isso.
– Digamos que sim. Ficar sozinho não me incomoda, a menos que apareça uma boa companhia... – arrisquei!
– E já apareceu?
– Com certeza. Estou falando com ela. Posso saber seu nome?
– Vanessa.
– Um belo nome para uma bela mulher – que ela me perdoe o lugar comum – O meu é Rodrigo.
– Você é alemão, Rodrigo?
– Não! Nem de longe!
– É parente, então?
– Filho de paraibanos, pra ser mais exato. Tenho cara de alemão?
– Olhos. Nossa, são tão verdes!
– Desculpa, não é nada contra você, mas adivinha quantas vezes já me falaram isso? Teve uma época que me incomodava e eu respondia que gostaria que não fossem verdes.
– Por quê?
– Bobagem. Até um amigo meu, um grande amigo por sinal, disse que isso não passava de um jogo da natureza, uma mera probabilidade. Sabe aquele negócio de cromossomos X e cromossomos Y, genes recessivos e dominantes?
– Nem me fale, sou bióloga.
– Pô, que furada, hein! Eu sou arquiteto.
– Então muito prazer, senhor arquiteto insatisfeito com seus olhos verdes!
– O prazer é todo meu, senhora bióloga de invejáveis olhos castanhos. Podemos trocá-los?
– Acho melhor não. Respeitemos o jogo e a sabedoria da natureza.
Assim começou nossa primeira
noite, sem formalidades, com um imenso e descomunal muro sendo derrubado a
marretadas em meio à cantoria e comemorações germânicas. Conversamos bastante,
até o ponto em que a algazarra do bar alemão permitiu. Saímos dali e fomos
jantar num local mais sossegado onde podíamos quase que sussurrar. Ela era uma
mulher refinada, bem distante do meu padrão de mulheres. Como diriam em Vila
Esperança – uma menina burguesa. Para mim isso pouco importava, estava
encantado com minha menina burguesa. Ela também não parecia preocupada com a
minha herança genética nem com minha descendência paraibana. Conversamos sobre
tudo quanto é assunto e eu cheguei até a revelar a existência de Bayeux, uma
cidade no caminho de João Pessoa, colonizada por franceses, onde é comum ver
paraibaninhos de olhos verdes.
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