terça-feira, 8 de março de 2022

Capítulo 4 - O homem que nunca sorri - Parte 1

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O homem que nunca sorri - Parte 1

 

Domingo é o sagrado dia do festival de futebol de várzea de Vila Esperança. Dia de ver o Mão de Onça jogar no gol do nosso time, o Corintinha. Chego cedo para acompanhar todos os preparativos. A festa vai até o pôr do sol. O campo de terra, com arquibancada natural num dos lados e atrás de um dos gols, fica sempre entupido de gente. Todo mundo disputa um lugar, no tapa se preciso for. A arquibancada é um morro que pega toda uma lateral do campo e o espaço atrás de um dos gols. 

 

São os melhores lugares porque dão uma visão mais elevada, ideal para se ver um jogo de futebol. A parte mais elevada do barranco faz fronteira com a chácara de um casal de alemães que, estranhamente, não tem filhos. A outra lateral do campo fica ao nível do chão. 

 

A rua da minha casa termina bem meio do campo. Atrás da outra trave, que também fica ao nível do chão, passa uma rua de terra e do outro lado da rua fica a casa do homem que nunca sorri, pai do Zezé, um dos meninos da minha faixa de idade. Com certeza, ele é o homem mais estranho que já vi.

 

Como cheguei cedo, as traves ainda estão peladas. Um senhor comanda a marcação do campo. Um ajudante aprofunda as marcas e outro joga cal. O tempo está nublado, se chover haverá lama, sinal de muitas disputas, jogadas violentas, substituições e expulsões. Se Deus quiser, não haverá brigas; mas Deus tem de querer mesmo!

 

Na lateral do lado da minha casa estão montando as barracas de churrasquinho, sanduíches, tubaína, Crush, cerveja, caipirinha e até pinga pura. Muitas crianças correm pelo campo atrás de uma bola de capotão com o couro já bastante gasto.

 

Entro na brincadeira até aparecer um homem carregando as redes. Aí eu largo tudo para ver ele colocar aquelas lindas redes azuis nas traves pintadas de branco. Ele termina, verifica se não ficou nenhum cantinho por onde a bola passe e confunda o juiz. Coloca a rede numa trave e vai para a outra. A molecada aproveita para chutar a bola na trave que já está com a rede.

 

O festival funciona assim: cada equipe tem o time A e o B, o A é o mais forte. Os jogos são eliminatórios, quem perde sai, mas nunca joga time A contra time B. No final, vai ter um troféu imitando prata para o campeão do torneio B e outro imitando ouro para o campeão do torneio A. Nosso time B é formado pelos moleques mais velhos e alguns adultos. O A tem mais adultos do que moleques. Meu ídolo é o Mão de Onça, um negro forte e alto com a maior mão que eu já vi num homem.


Dos moleques do time A o melhor é o Cidão, depois tem o Zé Carlos, o Bituca, o Osvaldo, o Bilé e o Neguinho. Eu jogo com todos eles durante a semana e acho que o que tem mais chance de virar profissional é o Cidão, um meia armador com o estilo do Ademir da Guia.       

                                                                 

Já passa das nove quando os primeiros times chegam em caminhões, ônibus e jardineiras. Os jogadores que estão em situação melhor vêm de carro, sob os olhos empolgados das Maria chuteiras. Os dois lados do morro já estão quase lotados e eu escalo o morro da lateral para encontrar um cantinho junto da cerca da chácara dos alemães.

 

O morro é alto e tem pouca inclinação. Quando encontro espaço, tenho de ficar quase todo o tempo de cócoras ou sentado com a perna encolhida para não acertar a cabeça de ninguém. Os primeiros times B entram em campo debaixo de muitos rojões. Todo mundo já sabe que os primeiros jogos são verdadeiras peladas, é só um jeito de ir esquentando até as disputas mais acirradas entre os melhores times A.

 

Entre eles, é claro, o Corintinha, com Mão de Onça e Cidão! Aí o tempo esquenta porque tudo indica que a decisão vai ficar entre Corintinha e Caixotão, da favela do Caixote em Pé, no Jardim Campanário, perto do Zoológico. O Caixotão não é um time clássico como o nosso, mas é muito forte e abusa das faltas, a maioria delas desleais.

 

Quando ele joga sempre tem confusão, principalmente no campo deles onde eles nunca perderam um torneio porque os outros times têm medo de ganhar no jogo e perder na porrada. A última vez que o Corintinha jogou lá, perdeu de 3 a 2, depois de estar vencendo por 2 a 0. Caçaram o Cidão de tudo quanto foi jeito e ele saiu machucado. Mão de Onça, coitado, fez o que pôde para segurar pelo menos o empate e ir para os pênaltis, mas não teve jeito. Terminamos o jogo com nove jogadores. Hoje, se der a final, vai ter cara de revanche. Deus queira que o pau não quebre!

 

Como todo mundo estava prevendo, a decisão vai ser mesmo entre Corintinha e Caixotão e eu estou aqui no meu cantinho, todo espremido, esperando o juiz apitar o começo do jogo. Nunca vi tanta gente! O morro parece um poleiro de galinhas e eu sou um pintinho no meio de tanto galo garnisé.

 

Para não dar confusão, trouxeram um juiz neutro, de Osasco. O primeiro tempo terminou com 1 a 0 para o Caixotão que, para variar, abusou do jogo desleal e eu aqui com um pressentimento de que vai dar merda. A nossa torcida está quase toda concentrada no barranco do lado onde eu estou. No barranco atrás do gol está a maior parte da torcida do Caixotão. Tudo misturado na geral.

 

Acho que fiz besteira, devia ter ficado junto com meu pai e meus irmãos mais velhos, nem sei onde eles estão agora. Para complicar, atrás de mim, em pé e agarrado na cerca do casal alemão está o homem que nunca sorri. Provocações surgem de todos os lados. Lá embaixo já tiveram dois começos de briga no primeiro tempo. Cinco jogadores já foram advertidos com cartão amarelo.


O Corintinha volta muito melhor e pressiona até conseguir o gol de empate aos trinta minutos. Se ficar assim vai para os pênaltis e o Mão de Onça pode brilhar! O clima vai ficando cada vez mais quente e eu com uma vontade danada de sair dali, mas sem saber como. Seu Duca, o homem que nunca sorri, dá mostras de que abusou das caipirinhas e quem paga por isso são minhas costas a cada gol perdido pelo Corintinha. Agarrado na cerca, ele não tem como mexer os braços e seus pés castigam minhas costelas.


Cidão faz um lançamento perfeito para o Neguinho que se livra do zagueiro e, quando vai bater para o gol, é chutado por trás e cai quase dentro da pequena área. O silêncio dura alguns segundos antes de ouvirmos o apito do juiz de Osasco.


Pênalti! Todo o galinheiro do meu lado pula de alegria e minhas costas sofrem o pior ataque do pé do homem que nunca sorri. Os jogadores do Caixotão cercam o juiz, empurrados por sua torcida. Aproveito a confusão para reclamar dos pontapés nas minhas costas.

 

– Pirralho filho da puta!




                                          Continua na próxima quarta-feira

 

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