segunda-feira, 21 de março de 2022

CAPÍTULO 5 - A PRIMEIRA VEZ - PARTE 1

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Capítulo 5 - a primeira vez - Parte 1


O que vou contar agora nunca foi revelado a ninguém. Não me pergunte o motivo porque nem mesmo eu sei. Era maio de 1968. Meu pai dizia que o mundo passava por uma transformação. Com certeza ele tinha ouvido isso no rádio. Eu era uma criança ainda. Naquela época, ter quatorze anos não era o mesmo que hoje. Existia uma certa inocência nos meninos e meninas de quatorze anos.

 

O mundo, como meu pai dizia, passava por uma transformação, alguma coisa que vinha lá da França, um tipo de revolução, mas não do jeito que imaginava meu desconhecido anjo Gabriel. Começou com umas greves de estudantes de universidades e escolas de ensino secundário em Paris, em confrontos dos estudantes com a polícia e acabou em greve geral de estudantes e ocupações de fábricas em toda a França.

 

Eu, para variar, não entendia muito bem essas coisas e quando os professores ou as pessoas mais velhas iam me explicar, eu ficava mais confuso ainda porque me falavam que a greve geral fora desencorajada pelo partido comunista lá da França e que os estudantes acabaram dominados pelo governo, que não era comunista, e acusavam os comunistas de tramarem contra a República.

 

Aí, eu lembrava que o Gabriel, meu amigo comunista, tinha me explicado que comunista gosta de greve e de revolução. Então por que os comunistas da França não queriam as greves? Comunista era diferente de país para país? Uma coisa, pelo menos o Gabriel acertou: a ditadura militar realmente se instalou no Brasil, mas ninguém podia falar sobre isso senão era chamado de comunista.


O presidente Castello Branco tinha falado que ia ficar pouco tempo no governo, mas acabou ficando até o ano passado. No lugar dele entrou outro militar, um tal de Costa e Silva. O coitado do Castello Branco morreu logo depois num acidente de avião. Meu pai ouviu no rádio. Mais que isso eu não sabia porque ninguém falava nada e o Gabriel, que era o que mais gostava de falar, nunca mais apareceu depois de ter me libertado do imperador Zé Rubens.

 

Outras mudanças aconteciam e, dessas, todo mundo falava porque não tinha nada a ver com política. Eu, como ficava escondido lá na Vila Esperança, não tinha como amar os Beatles nem os Rolling Stones, mas ouvia Roberto e Erasmo Carlos no rádio e, quando podia, via o programa da Jovem Guarda na casa do único vizinho que tinha televisão.

 

Meu irmão mais velho comprava uma revista chamada Intervalo que contava tudo sobre a turma da Jovem Guarda. Um dia ele apareceu em casa com uma calça esquisita e disse que era a calça do tremendão Erasmo Carlos. Meu pai não gostou nada daquilo e quase fez ele devolver a calça.

 

Minha vida naquela época se resumia a jogar bola, empinar papagaio, jogar taco, bolinha de gude, brincar de mãe na mula, correr de carrinho de rolimã e patinete, fazer guerra com bosta de vaca, rodar pião, soltar balão, brincar de mocinho e bandido e mais uma infinidade de coisas desconhecidas das crianças de hoje. Em meio a todas essas atividades, existiam aquelas mais selvagens como matar passarinho com estilingue, brincar de Tarzan na mata e, uma das minhas preferidas, invadir o sítio do seu Tobias!

 

Se a expressão existisse naquela época, com certeza diríamos que o sonho de consumo dos meninos da Vila Esperança era invadir o sítio do seu Tobias. Já para o seu Tobias, o pesadelo da sua vida era ter o sítio invadido pelos meninos da Vila Esperança. Aquele sítio tinha tudo o que uma criança mais gostava e o que mais temia: as árvores frutíferas apinhadas de frutas e a espingarda de tiro de sal do seu Tobias!

 

O medo, contudo, era recompensado pelo prazer de desfrutar das delícias proporcionadas naquela Terra das Maravilhas. Vezes sem conta tive a felicidade de pegar mel no tronco da castanheira, debaixo de uma nuvem de abelhas carvoeiras, uma espécie tão pequena que grudava no cabelo da gente. Quem tinha cabelo de pico, ou pixaim, sofria mais. As abelhas grudavam tanto que quando a gente voltava para casa à noite, tinha de lavar a cabeça para tirar as abelhinhas pretas escondidas no couro cabeludo.

 

Tínhamos combinado a invasão para depois do almoço. Quis o destino que, justamente naquele dia, a boia em casa estivesse reforçada com galinha ao molho pardo e vinho Sangue de Boi. A galinha fora morta e preparada pela minha mãe. O vinho, comprado pelo meu pai e reservado apenas para os adultos. Era a regra da casa. Acontece que uma das coisas mais agradáveis para os meninos da vila era quebrar regras. Sem que meu pai visse, coloquei vinho na garrafa de Grapette.

 

Para quem não conhece, Grapette era a marca de um refrigerante americano sabores uva e framboesa que chegou no Brasil em 1948. Foi o primeiro refrigerante sabor uva do país e eu lancei o primeiro Grapette sabor Sangue de Boi. Fiel ao slogan quem bebe Grapette, repete, eu e meus irmãos bebemos e repetimos Sangue de Boi. Depois, partimos para a invasão ao sítio do seu Tobias.

 

Devia ter, por baixo, uns quinze moleques ocupando a parte central do sítio, onde ficava a castanheira. Levamos corda, madeira e outras bugigangas e rapidinho fizemos três balanços presos ao tronco principal da castanheira. Meus irmãos, os mais velhos da turma, se encarregaram de passar as cordas em volta do tronco e de prendê-la nos assentos de madeira.

 

Tudo pronto, começa o festival do balanço. Ganha quem conseguir impulsionar mais alto o assento. Vale tudo, ficar sentado ou em pé no assento, até mesmo fora dele, agarrado à corda, no melhor estilo Tarzan. Impulsionados pelo Sangue de Boi infantil, eu e meus irmãos éramos os mais audazes, os que chegavam mais alto e com maior número de malabarismos.

 

É lógico que tanto malabarismo depois de um almoço reforçado e repetidas doses de Sangue de Boi logo faria estragos. A primeira e única vítima fui eu e devo dizer que cair do galho e enfrentar a ressaca de Sangue de Boi foi demais para mim.

 

A queda não foi o pior. Caí em cima do mato e não quebrei nada. O problema maior foi a dor de cabeça do vinho misturado com açúcar. Achei que estava delirando quando vi meninas no sítio. Eram três. Vieram com meninos da vila vizinha. Estavam brincando de esconde-esconde e uma delas veio se esconder justamente ali onde eu sofria o meu suplício.


Continua na próxima quarta-feira

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