Capítulo
5 - a primeira vez - Parte 1
O que vou
contar agora nunca foi revelado a ninguém. Não me pergunte o motivo porque nem
mesmo eu sei. Era maio de 1968. Meu pai dizia que o mundo passava por uma
transformação. Com certeza ele tinha ouvido isso no rádio. Eu era uma criança
ainda. Naquela época, ter quatorze anos não era o mesmo que hoje. Existia uma
certa inocência nos meninos e meninas de quatorze anos.
O mundo, como meu pai dizia,
passava por uma transformação, alguma coisa que vinha lá da França, um tipo de
revolução, mas não do jeito que imaginava meu desconhecido anjo Gabriel.
Começou com umas greves de estudantes de universidades e escolas de ensino
secundário em Paris, em confrontos dos estudantes com a polícia e acabou em
greve geral de estudantes e ocupações de fábricas em toda a França.
Eu, para variar, não
entendia muito bem essas coisas e quando os professores ou as pessoas mais
velhas iam me explicar, eu ficava mais confuso ainda porque me falavam que a
greve geral fora desencorajada pelo partido comunista lá da França e que os
estudantes acabaram dominados pelo governo, que não era comunista, e acusavam
os comunistas de tramarem contra a República.
Aí, eu lembrava que o Gabriel,
meu amigo comunista, tinha me explicado que comunista gosta de greve e de revolução.
Então por que os comunistas da França não queriam as greves? Comunista era
diferente de país para país? Uma coisa, pelo menos o Gabriel acertou: a
ditadura militar realmente se instalou no Brasil, mas ninguém podia falar sobre
isso senão era chamado de comunista.
O presidente Castello Branco tinha falado que ia ficar pouco tempo no governo, mas acabou ficando até o ano passado. No lugar dele entrou outro militar, um tal de Costa e Silva. O coitado do Castello Branco morreu logo depois num acidente de avião. Meu pai ouviu no rádio. Mais que isso eu não sabia porque ninguém falava nada e o Gabriel, que era o que mais gostava de falar, nunca mais apareceu depois de ter me libertado do imperador Zé Rubens.
Outras mudanças aconteciam
e, dessas, todo mundo falava porque não tinha nada a ver com política. Eu, como
ficava escondido lá na Vila Esperança, não tinha como amar os Beatles nem os
Rolling Stones, mas ouvia Roberto e Erasmo Carlos no rádio e, quando podia, via
o programa da Jovem Guarda na casa do único vizinho que tinha televisão.
Meu irmão mais velho
comprava uma revista chamada Intervalo que contava tudo sobre a turma da Jovem
Guarda. Um dia ele apareceu em casa com uma calça esquisita e disse que era a
calça do tremendão Erasmo Carlos. Meu
pai não gostou nada daquilo e quase fez ele devolver a calça.
Minha vida naquela época se resumia a
jogar bola, empinar papagaio, jogar taco, bolinha de gude, brincar de mãe na
mula, correr de carrinho de rolimã e patinete, fazer guerra com bosta de vaca,
rodar pião, soltar balão, brincar de mocinho e bandido e mais uma infinidade de
coisas desconhecidas das crianças de hoje. Em meio a todas essas atividades,
existiam aquelas mais selvagens como matar passarinho com estilingue, brincar
de Tarzan na mata e, uma das minhas preferidas, invadir o sítio do seu Tobias!
Se a expressão existisse naquela época,
com certeza diríamos que o sonho de consumo dos meninos da Vila Esperança era
invadir o sítio do seu Tobias. Já para o seu Tobias, o pesadelo da sua vida era
ter o sítio invadido pelos meninos da Vila Esperança. Aquele sítio tinha tudo o
que uma criança mais gostava e o que mais temia: as árvores frutíferas
apinhadas de frutas e a espingarda de tiro de sal do seu Tobias!
O medo, contudo, era
recompensado pelo prazer de desfrutar das delícias proporcionadas naquela Terra
das Maravilhas. Vezes sem conta tive a felicidade de pegar mel no tronco da
castanheira, debaixo de uma nuvem de abelhas carvoeiras, uma espécie tão
pequena que grudava no cabelo da gente. Quem tinha cabelo de pico, ou pixaim,
sofria mais. As abelhas grudavam tanto que quando a gente voltava para casa à
noite, tinha de lavar a cabeça para tirar as abelhinhas pretas escondidas no
couro cabeludo.
Tínhamos combinado a invasão para depois
do almoço. Quis o destino que, justamente naquele dia, a boia em casa estivesse
reforçada com galinha ao molho pardo e vinho Sangue de Boi. A galinha fora
morta e preparada pela minha mãe. O vinho, comprado pelo meu pai e reservado
apenas para os adultos. Era a regra da casa. Acontece que uma das coisas mais
agradáveis para os meninos da vila era quebrar regras. Sem que meu pai visse,
coloquei vinho na garrafa de Grapette.
Para quem não conhece,
Grapette era a marca de um refrigerante americano sabores uva e framboesa que
chegou no Brasil em 1948. Foi o primeiro refrigerante sabor uva do país e eu
lancei o primeiro Grapette sabor Sangue de Boi. Fiel ao slogan quem bebe Grapette, repete, eu e meus
irmãos bebemos e repetimos Sangue de Boi. Depois, partimos para a invasão ao
sítio do seu Tobias.
Devia ter, por baixo, uns quinze moleques
ocupando a parte central do sítio, onde ficava a castanheira. Levamos corda,
madeira e outras bugigangas e rapidinho fizemos três balanços presos ao tronco
principal da castanheira. Meus irmãos, os mais velhos da turma, se encarregaram
de passar as cordas em volta do tronco e de prendê-la nos assentos de madeira.
Tudo pronto, começa o
festival do balanço. Ganha quem conseguir impulsionar mais alto o assento. Vale
tudo, ficar sentado ou em pé no assento, até mesmo fora dele, agarrado à corda,
no melhor estilo Tarzan. Impulsionados pelo Sangue de Boi infantil, eu e meus
irmãos éramos os mais audazes, os que chegavam mais alto e com maior número de
malabarismos.
É lógico que tanto
malabarismo depois de um almoço reforçado e repetidas doses de Sangue de Boi
logo faria estragos. A primeira e única vítima fui eu e devo dizer que cair do
galho e enfrentar a ressaca de Sangue de Boi foi demais para mim.
A queda não foi o pior. Caí
em cima do mato e não quebrei nada. O problema maior foi a dor de cabeça do
vinho misturado com açúcar. Achei que estava delirando quando vi meninas no
sítio. Eram três. Vieram com meninos da vila vizinha. Estavam brincando de
esconde-esconde e uma delas veio se esconder justamente ali onde eu sofria o
meu suplício.
Continua na próxima quarta-feira
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