O homem que nunca sorri - Parte 2
– Pirralho filho da puta!
Não imaginava que ele
fosse capaz daquilo. No meio da confusão, com as torcidas esperando para ver se
o juiz de Osasco ia ter peito para confirmar o pênalti, o homem que nunca sorri
me joga do barranco. Passo que nem um torpedo sobre várias cabeças e caio quase
na risca da lateral, por cima de um punhado de torcedores da geral. Seu Duca,
a nova versão do Zé Rubens, me atirou do poleiro como se eu fosse um pinto
depenado.
Caí por cima dos torcedores do meu time, que nada
sofreram por causa da minha falta de peso. Graças a Deus não me machuquei, só
ficaram as dores. Meu novo ditador ainda me chamou de diabinho dos olhos
verdes. Ninguém pode imaginar como estou revoltado. Revoltado e impotente. Meu
drama passa completamente despercebido pelos torcedores ansiosos pela cobrança
do pênalti. Lembro do Gabriel, o desconhecido enviado por Deus para me livrar
do Zé Rubens. Por onde andará meu libertador? Só Deus sabe e não parece
disposto a enviá-lo para uma nova missão.
Os ânimos se acalmam, o juiz de Osasco consegue
segurar os jogadores mais exaltados do Caixotão. Cidão toma posição para a cobrança.
O silêncio se espalha por Vila Esperança e pelas vilas mais próximas até explodir
no grito de gol dos corintianinhos. Agora é só segurar os minutos restantes e
mais os descontos para conquistar a taça imitando ouro.
Os caixotenses, no entanto, não aceitam a derrota e
a briga começa. Em poucos minutos o palco da festa vira um campo de guerra. As
duas torcidas se encontram depois da invasão de campo iniciada atrás das traves
onde Cidão converteu o gol da vitória. Fico desesperado ao ver o tamanho da
violência. Transformam em armas paus de bandeiras além de outros arrancados da
cerca do casal alemão sem filhos e das cercas das casas vizinhas.
O sangue que derramei do rosto de Zé Rubens não é
nada comparado com o tanto de sangue surgido na batalha campal. Quero encontrar
meu pai e meus irmãos, mas a confusão é tão grande que mal consigo me afastar
do lugar onde caí feito um pinto pelado.
O confronto aumenta e ocupa as ruas vizinhas. Mães
e mulheres surgem do nada, na ânsia de salvar filhos, maridos e até netos da
matança que se prenuncia. Consigo me desvencilhar de um grupo de gladiadores,
atravesso o campo até a lateral da rua da minha casa onde avisto minha mãe.
Agarrada a meus irmãos na tentativa de resgatar meu
pai que, sem querer nem perceber, se engalfinhara com alguns torcedores
adversários, mas conseguira escapulir com algumas escoriações pelo corpo e um
fio de sangue vertendo da testa, logo acima do olho direito. Fico transtornado
ao ver meu pacífico pai ferido de guerra. Ao som das sirenes da rádio patrulha
os contendores se dispersam por todos os cantos de Vila Esperança.
À noite, em casa, cada um sabe onde a dor lhe dói
mais. A minha maior dor não é física. Dói na alma. Leite Glória até quando? Com a longa vivência dos dez anos não
consigo entender o que faz um homem atirar uma criança de um barranco como se
fosse um entulho, uma coisa sem serventia.
Meu pai permanece quieto, ouvindo o rádio. Minha
mãe, apreensiva, prepara a janta. Meus irmãos jogam palitinho e comentam o
grande acontecimento do dia. Minhas irmãs brincam com suas bonecas de pano e
prestam atenção na conversa dos irmãos. Alheio a todos, eu penso em Gabriel, na
falta dele. O anjo Gabriel, enviado de Deus. Se ele estivesse lá, teria me
defendido do homem que nunca sorri. Gabriel foi substituído pelo seu Duca e sua
maldade amplificada na minha mente de criança marcada.
Ficamos muito tempo ainda acordados depois da
janta, o que não é comum. Reina um silêncio de gelo, nem os cachorros se
manifestam. Em meio ao completo silêncio ressoa fundo nos meus ouvidos e na
minha alma dois estampidos.
– Tiros... – afirma meu
pai – e é aqui perto!
Saímos à rua
sobressaltados, meu pai à frente. Muitos vizinhos já estão lá. Ouvimos alguém
dizer que os tiros vieram da casa do seu Duca. Todos se deslocam para lá com
passos apressados. Encontramos uma agitação dentro e fora da casa. Meu pai se
adianta para descobrir o que aconteceu. É informado que a proprietária da casa,
dona Filomena, fora assassinada friamente pelo seu inquilino ao cobrar o
aluguel atrasado.
O homem que nunca sorri,
além de agressor de crianças, agora era um assassino. Antes de a polícia
aparecer, praticamente toda vizinhança já estava no local. Quando a polícia
chegou foi afastando todo mundo, abrindo espaço para a ambulância. Ninguém arredava
pé antes de ver o corpo ser retirado da casa.
Seu Duca, meu algoz,
fugira, deixando para trás mulher e filhos. Zezé, meu amigo de peladas e filho
do homem que nunca sorri, estava num canto, mais branco que papel. Cheguei
perto dele e ele parece que nem notou minha presença. Estava calado e soluçando
baixinho. Fiquei pensando no que poderia estar passando na cabeça dele.
Imaginei-me no lugar dele e estremeci. Se já carregava o fardo de ter nascido
no dia que Getúlio Vargas se matou, imagina ter um pai assassino!
Meia hora depois começava a retirada
de dona Filomena, tarefa nada fácil por causa do peso do seu corpo. Vários
homens abriram caminho carregando numa maca improvisada o gigantesco corpo sem
vida. Vi quando ele passou por mim dentro de um enorme vestido branco
totalmente manchado de vermelho no peito e na barriga. Seria melhor eu não ter
visto. De volta para casa no meio da madrugada, fui para a cama e não consegui
pregar o olho. Ora era o homem que nunca sorri que me visitava, vomitando
impropérios e me ameaçando com a arma do crime ainda fumegante, ora o corpo
gigantesco de Dona Filomena em seu vestido branco com uma interminável mancha
de sangue.
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