terça-feira, 15 de março de 2022

Capítulo 4 - O homem que nunca sorri - Parte 2

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O homem que nunca sorri - Parte 2


– Pirralho filho da puta!

 

Não imaginava que ele fosse capaz daquilo. No meio da confusão, com as torcidas esperando para ver se o juiz de Osasco ia ter peito para confirmar o pênalti, o homem que nunca sorri me joga do barranco. Passo que nem um torpedo sobre várias cabeças e caio quase na risca da lateral, por cima de um punhado de torcedores da geral. Seu Duca, a nova versão do Zé Rubens, me atirou do poleiro como se eu fosse um pinto depenado. 

 

Caí por cima dos torcedores do meu time, que nada sofreram por causa da minha falta de peso. Graças a Deus não me machuquei, só ficaram as dores. Meu novo ditador ainda me chamou de diabinho dos olhos verdes. Ninguém pode imaginar como estou revoltado. Revoltado e impotente. Meu drama passa completamente despercebido pelos torcedores ansiosos pela cobrança do pênalti. Lembro do Gabriel, o desconhecido enviado por Deus para me livrar do Zé Rubens. Por onde andará meu libertador? Só Deus sabe e não parece disposto a enviá-lo para uma nova missão.

 

Os ânimos se acalmam, o juiz de Osasco consegue segurar os jogadores mais exaltados do Caixotão. Cidão toma posição para a cobrança. O silêncio se espalha por Vila Esperança e pelas vilas mais próximas até explodir no grito de gol dos corintianinhos. Agora é só segurar os minutos restantes e mais os descontos para conquistar a taça imitando ouro.

 

Os caixotenses, no entanto, não aceitam a derrota e a briga começa. Em poucos minutos o palco da festa vira um campo de guerra. As duas torcidas se encontram depois da invasão de campo iniciada atrás das traves onde Cidão converteu o gol da vitória. Fico desesperado ao ver o tamanho da violência. Transformam em armas paus de bandeiras além de outros arrancados da cerca do casal alemão sem filhos e das cercas das casas vizinhas.


O sangue que derramei do rosto de Zé Rubens não é nada comparado com o tanto de sangue surgido na batalha campal. Quero encontrar meu pai e meus irmãos, mas a confusão é tão grande que mal consigo me afastar do lugar onde caí feito um pinto pelado.

 

O confronto aumenta e ocupa as ruas vizinhas. Mães e mulheres surgem do nada, na ânsia de salvar filhos, maridos e até netos da matança que se prenuncia. Consigo me desvencilhar de um grupo de gladiadores, atravesso o campo até a lateral da rua da minha casa onde avisto minha mãe.

 

Agarrada a meus irmãos na tentativa de resgatar meu pai que, sem querer nem perceber, se engalfinhara com alguns torcedores adversários, mas conseguira escapulir com algumas escoriações pelo corpo e um fio de sangue vertendo da testa, logo acima do olho direito. Fico transtornado ao ver meu pacífico pai ferido de guerra. Ao som das sirenes da rádio patrulha os contendores se dispersam por todos os cantos de Vila Esperança.  

 

À noite, em casa, cada um sabe onde a dor lhe dói mais. A minha maior dor não é física. Dói na alma. Leite Glória até quando? Com a longa vivência dos dez anos não consigo entender o que faz um homem atirar uma criança de um barranco como se fosse um entulho, uma coisa sem serventia.

 

Meu pai permanece quieto, ouvindo o rádio. Minha mãe, apreensiva, prepara a janta. Meus irmãos jogam palitinho e comentam o grande acontecimento do dia. Minhas irmãs brincam com suas bonecas de pano e prestam atenção na conversa dos irmãos. Alheio a todos, eu penso em Gabriel, na falta dele. O anjo Gabriel, enviado de Deus. Se ele estivesse lá, teria me defendido do homem que nunca sorri. Gabriel foi substituído pelo seu Duca e sua maldade amplificada na minha mente de criança marcada.

 

Ficamos muito tempo ainda acordados depois da janta, o que não é comum. Reina um silêncio de gelo, nem os cachorros se manifestam. Em meio ao completo silêncio ressoa fundo nos meus ouvidos e na minha alma dois estampidos.

 

– Tiros... – afirma meu pai – e é aqui perto!

 

Saímos à rua sobressaltados, meu pai à frente. Muitos vizinhos já estão lá. Ouvimos alguém dizer que os tiros vieram da casa do seu Duca. Todos se deslocam para lá com passos apressados. Encontramos uma agitação dentro e fora da casa. Meu pai se adianta para descobrir o que aconteceu. É informado que a proprietária da casa, dona Filomena, fora assassinada friamente pelo seu inquilino ao cobrar o aluguel atrasado.

 

O homem que nunca sorri, além de agressor de crianças, agora era um assassino. Antes de a polícia aparecer, praticamente toda vizinhança já estava no local. Quando a polícia chegou foi afastando todo mundo, abrindo espaço para a ambulância. Ninguém arredava pé antes de ver o corpo ser retirado da casa.

 

Seu Duca, meu algoz, fugira, deixando para trás mulher e filhos. Zezé, meu amigo de peladas e filho do homem que nunca sorri, estava num canto, mais branco que papel. Cheguei perto dele e ele parece que nem notou minha presença. Estava calado e soluçando baixinho. Fiquei pensando no que poderia estar passando na cabeça dele. Imaginei-me no lugar dele e estremeci. Se já carregava o fardo de ter nascido no dia que Getúlio Vargas se matou, imagina ter um pai assassino!

 

Meia hora depois começava a retirada de dona Filomena, tarefa nada fácil por causa do peso do seu corpo. Vários homens abriram caminho carregando numa maca improvisada o gigantesco corpo sem vida. Vi quando ele passou por mim dentro de um enorme vestido branco totalmente manchado de vermelho no peito e na barriga. Seria melhor eu não ter visto. De volta para casa no meio da madrugada, fui para a cama e não consegui pregar o olho. Ora era o homem que nunca sorri que me visitava, vomitando impropérios e me ameaçando com a arma do crime ainda fumegante, ora o corpo gigantesco de Dona Filomena em seu vestido branco com uma interminável mancha de sangue.



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