Capítulo 11 - É noite, tudo se sabe... - Parte 3
Na semana seguinte, já esquecido do episódio, e sem frequentar o boteco por alguns dias, acaba tirando o Radialista da cabeça. Encontrara um novo sentido na vida. No próximo sábado teria um jantar especial com sua nova namorada. Decidira que o jantar seria no seu apartamento e estava bastante envolvido com os preparativos. Confiante nos seus avanços na culinária, nada melhor do que um jantar romântico para comprovar. Toda noite chegava em casa com uma coisa diferente e deixava tudo arrumado na cozinha. Faria um salmão com alcaparras, vinho branco e torta holandesa de sobremesa. Antes do jantar, abriria um champanhe e brindariam na sala, próximo à janela, sob a luz do luar.
A paixão, como já era esperado, estava mexendo muito com ele e quem primeiro percebeu foi o Radialista, certa noite quando ele apareceu no boteco depois da ausência prolongada.
É noite, tudo se sabe... Passarinho quando abandona o ninho é porque está com o coração partido ou, melhor ainda, porque encontrou um novo amor...
Naquele momento ele sentiu vontade de sentar-se ao lado do Radialista. Gostaria de dizer a ele o quanto estava apaixonado, pedir uma música e declarar o seu amor ao vivo, na rádio imaginária. Mas não teve coragem, algo naquele homem o impedia, continha suas ações. Ao mesmo tempo em que desejava conhecê-lo, sentia receio de se aproximar. Receio este mais de se mostrar do que descobrir no outro o que o fazia levar aquela vida. O Radialista continuou com sua programação noturna, pondo no ar músicas e declarações de ouvintes a dedo, como se estivesse também tentando se aproximar de Rodrigo.
Chegou cedo em casa para preparar o tão esperado jantar. Havia marcado para as sete horas, tinha ainda muito tempo para enfrentar o salmão e todos os seus acompanhamentos. Depois de preparar tudo, tomou um banho, colocou uma roupa nova, perfumou-se e ficou esperando sentado no banco da prancheta que ficava encostada à janela da sala. O telefone tocou e ele levantou-se de um pulo. Ela estava a caminho. Deu uma última conferida em todos os detalhes e ficou aguardando a chegada da namorada com quem já se considerava seriamente comprometido. Talvez fosse cedo para pensar assim, mas seu coração estava totalmente tomado. Vislumbrava o fim da sua solidão. Poderia focar melhor a vida. Não teria mais as caminhadas noturnas; em compensação, dividiria seus pensamentos com outra pessoa. Era uma troca justa e ele começava a pensar seriamente nisso.
Da janela da sala ele observa a rua e resolve descer para esperá-la na porta do prédio. Oferecera-se para buscá-la em casa, mas o sorriso e a afirmação de que sabia se cuidar dissuadiram-no. A noite estava muito bonita, a temperatura amena e uma lua cheia que dominava quase todo o céu. Encostado na parede do prédio ele observa o movimento na rua e, mais particularmente, no boteco. Dali ele pode ver a silhueta do Radialista no balcão, fumando compassivamente enquanto aguarda o momento certo de começar a beber e colocar sua rádio no ar. Quando Rodrigo menos espera, a namorada surge na esquina e ilumina seu coração.
Ao entrar no apartamento, a moça fica fascinada com o capricho da decoração à luz de velas, da mesa e da janela, onde uma faixa comemora a sua chegada. Recebe um ramalhete de flores do arquiteto mais do que apaixonado. À Anelise, a mulher mais linda e adorável do mundo! Anelise agarra-o pelo pescoço e lhe dá um prolongado beijo. Em seguida, ele pega a garrafa de champanhe na geladeira e vai até a janela. As taças são as únicas duas que ele tem e que nunca foram usadas juntas. A rolha parece ter sido soldada à garrafa, tal a força que ele faz para abri-la. Finalmente, dois estouros – o da rolha saindo da garrafa e depois atingindo o teto de um carro estacionado abaixo da janela. Ele finge se esconder e é abraçado novamente pela encantadora Anelise. Cruzam as mãos com as taças e bebem lentamente, entremeado de beijos.
– Você tem olhos verdes tão intensos!
– Quisera não tê-los.
– Por quê? São tão lindos!
– Na realidade, são um fardo que eu carrego. Se pudesse escolher, teria olhos normais...castanhos, pretos... verdes ou azuis, nem pensar!
– Você é estranho, sabia? Todo mundo gostaria de ter olhos claros. Eu adoraria...
– Você não precisa, já é linda com seus olhos negros. Isso tudo é ilusão; mas não adianta tentar explicar, ninguém entende...
– Eu não entendo mesmo, amor. O que pode haver de errado nos seus olhos?
– Nada. É bobagem minha, uma bobagem antiga que não vale a pena ser discutida agora.
O cheiro do salmão sai pela janela e perfuma o céu enquanto o perfume de Anelise toma conta da sala. Na cabeça de Rodrigo, a paixão é sinestésica e confunde os sentidos. Terminado o jantar, os dois ficam deitados no sofá conversando sobre tudo e sobre nada. Passa da meia-noite, os dois vão para o quarto. Na pequena cama de solteiro, tentam equilibrar seus corpos em meio a afagos e carícias, mas são interrompidos pelo estridente barulho de sirenes descendo a Frei Caneca. Ignorada num primeiro momento, as sirenes se intensificam quando as viaturas de polícia param em frente ao prédio. Rodrigo se levanta nu como está e se coloca na janela, mantendo a luz do quarto desligada.
Lá embaixo uma tremenda confusão se inicia. Bandidos que desciam a Frei Caneca perseguidos pelas viaturas policiais pararam o carro e entraram no hotel pela porta da frente assustando os funcionários da recepção. As viaturas chegaram fazendo barulho e bloquearam a rua. Rodrigo e Anelise observam a cena de uma posição privilegiada, de onde é possível ver todo o prédio do hotel e o terreno ao fundo. Policiais cercam toda a área, uma parte entra no hotel enquanto outros dão cobertura e um terceiro grupo tenta chegar pelos fundos e surpreender os bandidos que tentarem pular o muro. Funcionários e clientes do hotel saem desesperados, muitos de cuecas, mulheres enroladas em lençóis e outras apenas de calcinha, escondendo os seios. Passado o susto, Anelise começa a se divertir com o movimento inusitado. Apesar de todo o aparato policial, os bandidos conseguem pular o muro e fugir pelos fundos sem que a polícia perceba. Rodrigo grita pela janela tentando alertar os policiais, mas ninguém ouve tal o barulho de vozes dos hóspedes e gritos dos policiais. De repente a rua fica repleta de gente saída de todos os cantos. A multidão se dispersa ao mesmo tempo que os policiais percebem que foram enganados pelos bandidos. Entram nas viaturas com armas em punho e saem em alta velocidade cantando os pneus.
Os dois deixam a janela assim que o silêncio volta a dominar a noite, quebrado apenas pelos sussurros, risos e murmúrios de gozo. Entregam-se ao jogo amoroso com a vontade e a volúpia da juventude.
– Não sei qual o seu problema com os seus olhos, sei apenas que é maravilhoso ser iluminada por eles depois de receber tanto amor, carinho e prazer...
– Talvez eles iluminem demais e acabem me ofuscando.
– Esquece, eu não vou analisar você, não sou psicóloga, sou jornalista. Como jornalista, meu dever é relatar os fatos tal como eles se apresentam. E quanto a você, meu gostoso arquiteto, não há nada que o ofusque.
O novo dia começa a surgir por volta das cinco horas. Rodrigo abre a porta da rua e os dois saem abraçados, dobram a esquina e seguem pela Rua Marquês de Paranaguá até onde o carro dela está estacionado. Despedem-se com um longo beijo. Ele espera o carro dar a partida e volta de cabeça erguida, sem pensar em nada que não se refira a amor.
Próximo à esquina do boteco, assusta-se ao ver o Radialista caído na calçada. Provavelmente ele estava muito bêbado quando o bar fechou, deitou-se ali e passou a noite ao relento. Ao se aproximar, Rodrigo sente o forte odor de urina. Pensa em voltar, mas dentro de si surge um apelo para que fique. O Radialista levanta a cabeça, olha fixo para ele e sorri o sorriso mais triste que ele já presenciara. Dos seus olhos escorrem lágrimas solitárias. Olham-se durante alguns segundos. O tempo necessário para o Radialista voltar ao mundo. Sua voz ecoa tão firme que ele nem parece estar naquele estado deplorável.
Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver, quero a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem... hoje, eu quero a paz de criança dormindo, e o abandono de flores se abrindo. Para enfeitar a noite do meu bem... É noite, tudo se sabe...
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