Capítulo 10 - A tragédia de Ubatuba
Livre das amarras do
"vereador" Filipe, coloquei a política partidária em segundo plano e
me concentrei na arquitetura – e nas alunas da arquitetura. Não tinham
muitas mulheres na minha turma, mas as que tinham valiam a pena. Em pouco tempo
formamos um grupo bem heterogêneo. Cabeças pensantes, pensando o mundo de formas
diversificadas. O espaço deixado por Filipe foi ocupado por Sérgio, um jovem de
21 anos, de família pobre como a minha e cheio de sonhos grandiosos. Um cara
simples que gostava de literatura, rock & roll, carros turbinados e
futebol. Chamavam-no de caipira porque ele veio de Lins e mantinha o sotaque
carregado do interior. Para mim ele era o Serjão, o único com quem eu falava
abertamente das minhas fraquezas. Amigo muito mais do que colega, o único de
quem eu aceitava conselhos. Nas muitas conversas que tivemos até altas horas,
revelei a ele o incômodo causado pelos meus olhos verdes.
–
Para com isso, Rodrigo, a cor dos olhos não tem nada a ver com pobreza ou
riqueza, é pura casualidade genética. Nunca estudou biologia, cara? Já esqueceu
aquela história de cromossomo X, cromossomo Y, gene recessivo e gene dominante?
E daí que só você tem olhos verdes na família? É o jogo da natureza, não
adianta ir contra.
Como
falar do “pai dos pobres” depois disso? Foi ele quem extraiu o humor camada sob
camada abaixo das minhas carrancas e me fez ver a vida de uma maneira
completamente nova. Às vezes eu tinha impressão que estava voltando a ser a
criança da Vila Esperança, recém-liberta do Zé Rubens. Livre, cada vez mais
livre. Os amigos da faculdade propiciavam esse renascer na minha alma até então
apagada. Foram quatro anos de descobertas, paixões, discussões acaloradas e
muita, muita farra. Curtimos festas loucas, passeios memoráveis, acampamentos e
viagens inesquecíveis.
No
último ano da faculdade, alugamos um casarão em Ubatuba, não por mera
coincidência, durante a Copa do Mundo de 1982. O time do Telê Santana estava
novamente enchendo os olhos com vitórias deslumbrantes e um futebol refinado,
pura arte! Nem todo mundo, é lógico, gostava de futebol, mas Copa do Mundo é
Copa do Mundo! Saímos na manhã de sexta-feira. O jogo era na segunda à tarde,
tínhamos muito tempo para curtir a praia e tudo mais. Ao todo eram dezessete
pessoas, sete mulheres, o que propiciava uma variada probabilidade de relacionamentos
amorosos ou puro sexo. A loucura já começava em fazer a viagem no carro do
Serjão, um Dodge Dart vermelho sanguinário, todo turbinado, motor envenenado e
com um ronco de causar inveja num Fórmula 1. Arrojado no design e mecânica de
carros, Serjão era tradicional ao volante, principalmente quando estava com o
carro cheio dos amigos da faculdade. Jurandir, um aluno de medicina muito do
maluco, tentou de todas as maneiras convencer o Serjão a passar o volante para
ele, mas não teve jeito. Sorte nossa, porque o Jurandir era pé de chumbo.
Quis
o destino e a mística que o sol resolvesse não dar as caras logo que chegamos.
Tudo bem, contanto que não chovesse, o estrago seria pequeno. Era praticamente
a nossa última oportunidade de desfrutar todo aquele paraíso antes da
formatura. Depois, cada qual pegaria seu caminho, alguns continuariam a
amizade, outros ficariam no passado, sem muitas marcas. Já minha amizade com
Serjão tinha tudo para ser prolongada, o tipo de amizade à prova do tempo. Eu
tinha uma baita consideração e admiração por ele. Acho que ele me preenchia de
alguma maneira. Na companhia dele eu levava a vida de forma mais leve, deixava
de lado as coisas que me puxavam para baixo. E foi assim durante aqueles quatro
dias inesquecíveis naquele casarão entregue a dezessete jovens sedentos por
vida, antes que as responsabilidades da profissão nos pegasse de jeito, os
compromissos da vida pesassem nas nossas costas. Por isso rolou de tudo naquela
casa, muita bebida, música, alguma droga enrustida, paixões, adrenalinas,
testosteronas, hormônios vazando pelos poros, beijos, abraços, amassos,
carinhos correspondidos, não correspondidos, choros, brigas, desavenças,
reconciliações, euforias, alucinações, encontros, desencontros... E no final:
Estádio Sarriá, Espanha, Brasil versus Itália, jogo de vida ou morte, reedição
da final de 1970. Dá-lhe Brasil!
A
televisão não era muito grande e dava umas travadas repentinas. O tempo estava
nublado, sujeito a chuva. Todo mundo amontoado na sala e o Serjão no meio,
puxando o coro da torcida. Única certeza: outra exibição de gala da melhor
seleção do mundial. Brasil classificado, italianos chorando mais uma derrota
contra os melhores do mundo. Torcedores espanhóis do nosso lado, festa
antecipada, rumo ao caneco. Não tinha como não estar eufórico. A bebedeira
começou cedo e na hora do jogo alguns já tinham tombado. Serjão era o mais
animado e o mais convicto da vitória. Brasil 3 a 0, com gols de Sócrates, Zico
e Falcão. A Itália era uma baba, tinha empatado todos os jogos da primeira fase
e só se classificou por causa do saldo de gols. Já o Brasil de Telê Santana
venceu todos os jogos, cada um mais empolgante do que o outro: 2 a 1 na Rússia,
4 a 1 na Escócia, 4 a 0 na Nova Zelândia e 3 a 1 en los hermanos!
Nunca
havia visto o Serjão tão empolgado, nem sei se ele tinha faturado alguma garota
nas loucuras do pré-jogo, mas se tivesse, não estaria tão eufórico quanto
estava no momento em que o Brasil entrou em campo. Sua empolgação, porém, foi
gradativamente sendo minada por Paolo Rossi e pela marcação implacável da squadra
azzura. Primeiro vacilo e Paolo Rossi carimba 1 a 0. Primeiro gol dele no
mundial! Não foi o bastante para abalar o Serjão, confiante apesar da
preocupação geral de todos os brasileiros. Depois de muita unha roída e muitas
tentativas do time de Telê, veio o alívio. Zico acha Sócrates livre que toca
entre a trave e Dino Zoff. 1 a 1 e a volta da alegria, da confiança, da
cervejada! O Brasil precisava apenas de um empate para se classificar, mas todo
mundo queria mais uma goleada, esquecendo-se que do outro lado tinha uma Itália
cada vez mais pegadora e organizada. O time de Enzo Bearzot ansiava por mais um
vacilo dos imbatíveis e ele veio aos vinte e cinco minutos quando Toninho
Cerezo errou um passe bisonhamente no meio de campo e entregou a bola, para
quem? Paolo Rossi que avançou que nem um foguete e fulminou Waldir Peres. 2 a 1
Itália. Eu gelei, assim como a maioria de nós grudada na telinha. Até o Serjão
sentiu o golpe. Não era possível, ele não acreditava no que estava vendo.
Começou a beber, coisa que ele pouco fazia. Acabou o primeiro tempo, os
jogadores brasileiros se retiraram abatidos.
Ninguém
dizia nada, apenas resmungávamos. Um fio de esperança ainda estava guardado
para o segundo tempo; no entanto, pela primeira vez naquele mundial víamos
nossa seleção pisando em ovos e com medo. O jogo recomeçou e aumentou mais
ainda nosso desespero, o Brasil não conseguia encaixar nenhuma jogada e a
Itália crescia a cada minuto. Quando nossos atacantes conseguiam acertar o gol,
brilhava a estrela de Zoff. O nó na garganta apertava até o momento que Falcão
recebeu a bola na entrada da área, percebeu a defesa italiana se abrir e bateu
forte para empatar. Agora era só segurar o 2 a 2 e garantir a vaga! O problema
era que aquela seleção não sabia jogar se defendendo, tinha obsessão pelo gol e
pelo futebol bonito. Faltando quinze minutos para o final o Brasil cede um
escanteio e com a defesa toda desatenta vê a bola atravessar toda a pequena
área e encontrar quem? Paolo Rossi completamente livre para marcar e decretar a
tragédia de Sarriá. Itália 3, Brasil 2. Brasil desclassificado, para espanto do
mundo inteiro!
Eu
nunca tinha visto o Serjão bêbado e chorando como uma criança, completamente desnorteado.
Tentei consolá-lo de todas as maneiras, mas não consegui. Queria ter esse
poder, mas não o tinha. Fiquei de olho nele. Todos nós estávamos abobalhados,
sem saber o que falar, pensando na volta para casa. Começou a cair uma garoa
fina. Achamos melhor voltar no dia seguinte, esperar passar aquele clima de
velório. Serjão não tinha comido nada e, de repente, começou a comer, talvez
porque estivesse bêbado e arrasado. Resolvi tirá-lo dali antes que ele entrasse
num coma alcoólico ou numa congestão. Pensei que o melhor seria fazê-lo
caminhar e saí com ele em direção à praia. Evitei falar de futebol, falei das
garotas e da possibilidade de alguma coisa ainda rolar naquela última noite.
Nada disso o animou. Aí eu pensei que o Brasil inteiro estava assim. Um velório
sem mortos. E fiquei pensando que alguma coisa estava errada. De um lado, uma
nação em festa e de outro um país inteiro entregue à tristeza e às lamentações.
O futebol não pode ter o poder de destruir uma nação inteira! Tudo estava
errado, fizemos aquela viagem para nos divertirmos, para lavar a alma e sermos
felizes, nunca para terminar daquela forma.
Fiquei
encucado com esse pensamento e quando consegui me libertar dele, cadê o Serjão?
De novo, o velho pressentimento caiu como um raio em cima de mim. Corri em
direção ao mar e consegui vê-lo depois do quebra-ondas, se debatendo. O mar
estava calmo, meu coração agitado. Nadei o mais rápido que pude e consegui
chegar até ele que se debatia de forma estranha para quem sabia nadar tão bem. Esperei
o melhor momento de agarrá-lo. Com muito esforço consegui trazê-lo para a
margem. Estava desacordado. Gritei por socorro. Logo a praia estava cheia e eu
tentando reanimá-lo com massagens no peito, respiração boca a boca, qualquer
coisa que pudesse trazê-lo de volta. Tudo em vão!
Meu
amigo morreu por entrar no mar com excesso de comida e bebida. Uma congestão ou
algo assim. Quem me afastou dele foi Jurandir, já quase um médico. O Brasil
inteiro chorava pela tragédia de Sarriá, mas o que era isso perto da tragédia
de Ubatuba? Nunca mais veria meu amigo, assim como nunca mais veria Gabriel,
Liane, meu pai... Na falta do que pensar, pensei na minha sina maldita; na
morte do “pai dos pobres” no dia do meu nascimento. Queria morrer também, mas
isso ainda não me era permitido.
No dia seguinte fomos à casa dos pais do Sergio, uma casa humilde no Parque Bristol, divisa com São Bernardo. Passamos lá a noite toda. Seus pais eram evangélicos, atravessaram a noite orando e chorando. No outro dia enterraram o filho mais velho, o mais promissor. Fizemos uma homenagem no centro do campus, numa noite fria e triste como a minha alma. Pensei no assalto, na minha vida nas mãos de um bandido que me permitiu continuar vivendo. Um bandido! Eu tive a vida de meu melhor amigo nas minhas mãos e não consegui salvá-lo! Por que o mundo é assim, Senhor?
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