quarta-feira, 15 de junho de 2022

CAPÍTULO 10 – A TRAGÉDIA DE UBATUBA


Capítulo 10 - A tragédia de Ubatuba


Livre das amarras do "vereador" Filipe, coloquei a política partidária em segundo plano e me concentrei na arquitetura – e nas alunas da arquitetura. Não tinham muitas mulheres na minha turma, mas as que tinham valiam a pena. Em pouco tempo formamos um grupo bem heterogêneo. Cabeças pensantes, pensando o mundo de formas diversificadas. O espaço deixado por Filipe foi ocupado por Sérgio, um jovem de 21 anos, de família pobre como a minha e cheio de sonhos grandiosos. Um cara simples que gostava de literatura, rock & roll, carros turbinados e futebol. Chamavam-no de caipira porque ele veio de Lins e mantinha o sotaque carregado do interior. Para mim ele era o Serjão, o único com quem eu falava abertamente das minhas fraquezas. Amigo muito mais do que colega, o único de quem eu aceitava conselhos. Nas muitas conversas que tivemos até altas horas, revelei a ele o incômodo causado pelos meus olhos verdes. 

 

     – Para com isso, Rodrigo, a cor dos olhos não tem nada a ver com pobreza ou riqueza, é pura casualidade genética. Nunca estudou biologia, cara? Já esqueceu aquela história de cromossomo X, cromossomo Y, gene recessivo e gene dominante? E daí que só você tem olhos verdes na família? É o jogo da natureza, não adianta ir contra.

 

     Como falar do “pai dos pobres” depois disso? Foi ele quem extraiu o humor camada sob camada abaixo das minhas carrancas e me fez ver a vida de uma maneira completamente nova. Às vezes eu tinha impressão que estava voltando a ser a criança da Vila Esperança, recém-liberta do Zé Rubens. Livre, cada vez mais livre. Os amigos da faculdade propiciavam esse renascer na minha alma até então apagada. Foram quatro anos de descobertas, paixões, discussões acaloradas e muita, muita farra. Curtimos festas loucas, passeios memoráveis, acampamentos e viagens inesquecíveis.

 

     No último ano da faculdade, alugamos um casarão em Ubatuba, não por mera coincidência, durante a Copa do Mundo de 1982. O time do Telê Santana estava novamente enchendo os olhos com vitórias deslumbrantes e um futebol refinado, pura arte! Nem todo mundo, é lógico, gostava de futebol, mas Copa do Mundo é Copa do Mundo! Saímos na manhã de sexta-feira. O jogo era na segunda à tarde, tínhamos muito tempo para curtir a praia e tudo mais. Ao todo eram dezessete pessoas, sete mulheres, o que propiciava uma variada probabilidade de relacionamentos amorosos ou puro sexo. A loucura já começava em fazer a viagem no carro do Serjão, um Dodge Dart vermelho sanguinário, todo turbinado, motor envenenado e com um ronco de causar inveja num Fórmula 1. Arrojado no design e mecânica de carros, Serjão era tradicional ao volante, principalmente quando estava com o carro cheio dos amigos da faculdade. Jurandir, um aluno de medicina muito do maluco, tentou de todas as maneiras convencer o Serjão a passar o volante para ele, mas não teve jeito. Sorte nossa, porque o Jurandir era pé de chumbo.

 

     Quis o destino e a mística que o sol resolvesse não dar as caras logo que chegamos. Tudo bem, contanto que não chovesse, o estrago seria pequeno. Era praticamente a nossa última oportunidade de desfrutar todo aquele paraíso antes da formatura. Depois, cada qual pegaria seu caminho, alguns continuariam a amizade, outros ficariam no passado, sem muitas marcas. Já minha amizade com Serjão tinha tudo para ser prolongada, o tipo de amizade à prova do tempo. Eu tinha uma baita consideração e admiração por ele. Acho que ele me preenchia de alguma maneira. Na companhia dele eu levava a vida de forma mais leve, deixava de lado as coisas que me puxavam para baixo. E foi assim durante aqueles quatro dias inesquecíveis naquele casarão entregue a dezessete jovens sedentos por vida, antes que as responsabilidades da profissão nos pegasse de jeito, os compromissos da vida pesassem nas nossas costas. Por isso rolou de tudo naquela casa, muita bebida, música, alguma droga enrustida, paixões, adrenalinas, testosteronas, hormônios vazando pelos poros, beijos, abraços, amassos, carinhos correspondidos, não correspondidos, choros, brigas, desavenças, reconciliações, euforias, alucinações, encontros, desencontros... E no final: Estádio Sarriá, Espanha, Brasil versus Itália, jogo de vida ou morte, reedição da final de 1970. Dá-lhe Brasil!

 

     A televisão não era muito grande e dava umas travadas repentinas. O tempo estava nublado, sujeito a chuva. Todo mundo amontoado na sala e o Serjão no meio, puxando o coro da torcida. Única certeza: outra exibição de gala da melhor seleção do mundial. Brasil classificado, italianos chorando mais uma derrota contra os melhores do mundo. Torcedores espanhóis do nosso lado, festa antecipada, rumo ao caneco. Não tinha como não estar eufórico. A bebedeira começou cedo e na hora do jogo alguns já tinham tombado. Serjão era o mais animado e o mais convicto da vitória. Brasil 3 a 0, com gols de Sócrates, Zico e Falcão. A Itália era uma baba, tinha empatado todos os jogos da primeira fase e só se classificou por causa do saldo de gols. Já o Brasil de Telê Santana venceu todos os jogos, cada um mais empolgante do que o outro: 2 a 1 na Rússia, 4 a 1 na Escócia, 4 a 0 na Nova Zelândia e 3 a 1 en los hermanos!

 

     Nunca havia visto o Serjão tão empolgado, nem sei se ele tinha faturado alguma garota nas loucuras do pré-jogo, mas se tivesse, não estaria tão eufórico quanto estava no momento em que o Brasil entrou em campo. Sua empolgação, porém, foi gradativamente sendo minada por Paolo Rossi e pela marcação implacável da squadra azzura. Primeiro vacilo e Paolo Rossi carimba 1 a 0. Primeiro gol dele no mundial! Não foi o bastante para abalar o Serjão, confiante apesar da preocupação geral de todos os brasileiros. Depois de muita unha roída e muitas tentativas do time de Telê, veio o alívio. Zico acha Sócrates livre que toca entre a trave e Dino Zoff. 1 a 1 e a volta da alegria, da confiança, da cervejada! O Brasil precisava apenas de um empate para se classificar, mas todo mundo queria mais uma goleada, esquecendo-se que do outro lado tinha uma Itália cada vez mais pegadora e organizada. O time de Enzo Bearzot ansiava por mais um vacilo dos imbatíveis e ele veio aos vinte e cinco minutos quando Toninho Cerezo errou um passe bisonhamente no meio de campo e entregou a bola, para quem? Paolo Rossi que avançou que nem um foguete e fulminou Waldir Peres. 2 a 1 Itália. Eu gelei, assim como a maioria de nós grudada na telinha. Até o Serjão sentiu o golpe. Não era possível, ele não acreditava no que estava vendo. Começou a beber, coisa que ele pouco fazia. Acabou o primeiro tempo, os jogadores brasileiros se retiraram abatidos.

 

     Ninguém dizia nada, apenas resmungávamos. Um fio de esperança ainda estava guardado para o segundo tempo; no entanto, pela primeira vez naquele mundial víamos nossa seleção pisando em ovos e com medo. O jogo recomeçou e aumentou mais ainda nosso desespero, o Brasil não conseguia encaixar nenhuma jogada e a Itália crescia a cada minuto. Quando nossos atacantes conseguiam acertar o gol, brilhava a estrela de Zoff. O nó na garganta apertava até o momento que Falcão recebeu a bola na entrada da área, percebeu a defesa italiana se abrir e bateu forte para empatar. Agora era só segurar o 2 a 2 e garantir a vaga! O problema era que aquela seleção não sabia jogar se defendendo, tinha obsessão pelo gol e pelo futebol bonito. Faltando quinze minutos para o final o Brasil cede um escanteio e com a defesa toda desatenta vê a bola atravessar toda a pequena área e encontrar quem? Paolo Rossi completamente livre para marcar e decretar a tragédia de Sarriá. Itália 3, Brasil 2. Brasil desclassificado, para espanto do mundo inteiro!

 

     Eu nunca tinha visto o Serjão bêbado e chorando como uma criança, completamente desnorteado. Tentei consolá-lo de todas as maneiras, mas não consegui. Queria ter esse poder, mas não o tinha. Fiquei de olho nele. Todos nós estávamos abobalhados, sem saber o que falar, pensando na volta para casa. Começou a cair uma garoa fina. Achamos melhor voltar no dia seguinte, esperar passar aquele clima de velório. Serjão não tinha comido nada e, de repente, começou a comer, talvez porque estivesse bêbado e arrasado. Resolvi tirá-lo dali antes que ele entrasse num coma alcoólico ou numa congestão. Pensei que o melhor seria fazê-lo caminhar e saí com ele em direção à praia. Evitei falar de futebol, falei das garotas e da possibilidade de alguma coisa ainda rolar naquela última noite. Nada disso o animou. Aí eu pensei que o Brasil inteiro estava assim. Um velório sem mortos. E fiquei pensando que alguma coisa estava errada. De um lado, uma nação em festa e de outro um país inteiro entregue à tristeza e às lamentações. O futebol não pode ter o poder de destruir uma nação inteira! Tudo estava errado, fizemos aquela viagem para nos divertirmos, para lavar a alma e sermos felizes, nunca para terminar daquela forma.

 

     Fiquei encucado com esse pensamento e quando consegui me libertar dele, cadê o Serjão? De novo, o velho pressentimento caiu como um raio em cima de mim. Corri em direção ao mar e consegui vê-lo depois do quebra-ondas, se debatendo. O mar estava calmo, meu coração agitado. Nadei o mais rápido que pude e consegui chegar até ele que se debatia de forma estranha para quem sabia nadar tão bem. Esperei o melhor momento de agarrá-lo. Com muito esforço consegui trazê-lo para a margem. Estava desacordado. Gritei por socorro. Logo a praia estava cheia e eu tentando reanimá-lo com massagens no peito, respiração boca a boca, qualquer coisa que pudesse trazê-lo de volta. Tudo em vão!

 

     Meu amigo morreu por entrar no mar com excesso de comida e bebida. Uma congestão ou algo assim. Quem me afastou dele foi Jurandir, já quase um médico. O Brasil inteiro chorava pela tragédia de Sarriá, mas o que era isso perto da tragédia de Ubatuba? Nunca mais veria meu amigo, assim como nunca mais veria Gabriel, Liane, meu pai... Na falta do que pensar, pensei na minha sina maldita; na morte do “pai dos pobres” no dia do meu nascimento. Queria morrer também, mas isso ainda não me era permitido.

 

     No dia seguinte fomos à casa dos pais do Sergio, uma casa humilde no Parque Bristol, divisa com São Bernardo. Passamos lá a noite toda. Seus pais eram evangélicos, atravessaram a noite orando e chorando. No outro dia enterraram o filho mais velho, o mais promissor. Fizemos uma homenagem no centro do campus, numa noite fria e triste como a minha alma. Pensei no assalto, na minha vida nas mãos de um bandido que me permitiu continuar vivendo. Um bandido! Eu tive a vida de meu melhor amigo nas minhas mãos e não consegui salvá-lo! Por que o mundo é assim, Senhor? 


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