Eu estava com vinte anos e
ainda morava na Vila Esperança. Muita coisa havia mudado por lá. O campo de
várzea aos poucos deixava de existir. Uma construtora havia comprado o terreno e
dividira-o em lotes, para construção de casas populares. O sítio do seu Tobias
também não resistira à expansão imobiliária. A castanheira, o pântano de
taboas, o abacateiro e as abelhas carvoeiro cederam espaço às escavadeiras da
construtora responsável pelo lançamento do Conjunto Residencial Jardim dos
Canários, um imponente pombal de cinco prédios de oito andares com apartamentos
de dois dormitórios onde nem canário existia mais. Os meninos mais velhos
estavam quase todos casados, outros haviam mudado, dois foram presos e os demais
estavam trabalhando. Arrumei emprego em um banco e parei de estudar. Ainda influenciado
pelo assalto, pouco saía de casa, principalmente à noite.
O trabalho no banco não me
agradava e eu não tinha quase nenhuma afinidade com as pessoas que trabalhavam
comigo. Passava o tempo todo sozinho, não namorava nem participava de nada que
envolvesse pessoas. Foi um período obscuro na minha vida, minha idade
média. Período em que mais se acentuou o meu distanciamento da vida real
e a crescente apatia diante do meu papel no mundo e na sociedade. O regime
militar ainda dava as cartas na vida política do país sob o comando do general
Ernesto Geisel, o "alemão". Presidente da Petrobrás no governo de seu
antecessor, Garrastazu Médici, ele teve o apoio decisivo de seu irmão Orlando
Geisel, ministro do Exército de Médici, para chegar à presidência pela Aliança
Renovadora Nacional, derrotando Ulisses Guimarães, do MDB. Assumiu a
presidência em março de 1974 e teve seu governo marcado pelo início de uma
abertura política e a amenização do rigor da ditadura militar brasileira, mesmo
encontrando forte oposição dos políticos da linha dura. Tudo isso, porém, não
fazia a menor diferença para mim, envolto na minha própria concha e alheio a
tudo que se passava além das fronteiras de Vila Esperança. A única coisa
que permanecia inalterada era a admiração por meu pai.
Ele continuava lutando para
manter a família, em variadas atividades de ganha pão. De cobrador de ônibus
passou a dono de uma banca de jornais e logo depois a cambista de jogo de
bicho. Exerceu todas essas funções com muita dignidade e honestidade de causar
inveja a um Mahatma Gandhi. Meu pai era meu ponto de equilíbrio, mesmo que já
não nos falássemos com a mesma frequência e franqueza da minha infância. Falta
de franqueza, na maioria das vezes, da minha parte. Apesar da idade, ele mantinha
o mesmo ritmo da juventude e não se abalava com as dificuldades financeiras
sempre presentes na vida da família. Comprara a casa de três cômodos onde
morávamos de aluguel. Com a venda de parte do terreno, construiu um banheiro interno
e mais dois quartos, além da reforma da cozinha e a construção de uma garagem
para acomodar a Brasília 73 seminova. Com a crise do petróleo, comprou uma moto
de 250 cilindradas. Com ela circulava muito além de Vila Esperança, espalhando
esperança a todos seus apostadores e clientes fiéis. Muita gente torcia o nariz
para sua atividade profissional, nada que o abalasse. Muito menos a mim que
nunca tive vergonha de nada feito pelo meu pai. Todo trabalho, dizia ele, é
digno; indigno, é não trabalhar.
Vocês, devem ter percebido que eu pouco falo
da minha mãe. Não significa que eu não tenha por ela admiração, amor ou os
sentimentos que uma mãe desperta em seus filhos. Tenho-os todo, sempre os tive!
No entanto, nada do que marcou minha vida, minha sina, meu desapegar do
verdadeiro papel que deveria ter na história provém de minha mãe, da minha
relação com ela para ser mais preciso. A paternidade tem matizes profundamente
diferentes da maternidade. A relação pai-filho é profundamente diferente da
relação mãe-filho. Na minha geração, a presença do pai na casa era
profundamente diferente do que é na geração atual. Pai, muito geralmente, era
amado ou odiado. Raras vezes tinha espaço para meio termo ou nuances entre
esses dois polos. Naquele momento da minha vida eu precisava muito do meu pai.
Tinham coisas que eu só conseguia conversar com ele, coisas de homem. Meus
irmãos e irmãs tinham seus próprios mundos. Ele nunca negou respostas às minhas
perguntas. Mesmo que não fossem as que eu esperava, eram respostas, significava
que ele dava atenção a minhas dúvidas. À medida que fui crescendo, a quantidade
de perguntas foi diminuindo. Crianças combinam com perguntas, adolescentes, com
suas próprias respostas. O destino, entretanto, sabe como ser cruel e
dispõe de todas as armas para isso. Quando eu mais precisava de meu pai, o
destino tratou de tirá-lo de mim. Não satisfeito, deixou em mim uma profunda marca
interna. Usando meu pai como instrumento, plantou na minha mente, na minha
alma, a semente da confusão psicológica que um dia cresceria e mudaria
drasticamente o rumo da minha vida.
Em todas as suas andanças
como mensageiro da sorte na sua motocicleta, ao final do dia ele se queixava de
dores no peito e ouvia de minha mãe sempre a mesma recomendação. “Procure um
médico, meu velho”. A dedicação ao trabalho e a necessidade de manter a família
faziam-no adiar dia após dia a ida ao médico. Até que a notícia chegou em casa
antes dele. Ele passava o dia todo fora, algumas vezes não aparecia nem para
almoçar. Geralmente comia em algum boteco, onde aproveitava para recolher as
apostas dos frequentadores. Naquela tarde, ele parou num boteco no bairro do
Taboão, em São Bernardo do Campo. Comeu um “pf” e um salgadinho. Quando ia
subir na moto, começou a passar mal e foi socorrido por dois homens que estavam
na frente do bar. Dali foi levado a um pronto socorro e, em seguida, a um
hospital. Ficamos sabendo que ele sofrera um infarto e estava na UTI.
Longos dias se passaram e seu
quadro não se alterava. Felizmente, o hospital ficava próximo ao banco onde eu
trabalhava. Podia visitá-lo todos os dias no horário do almoço e ao final da
tarde. Eram dias penosos. Acostumado à vida sempre ativa de meu pai, não me
conformava em vê-lo deitado e todo entubado, sem a mínima reação, um gesto que
fosse, um piscar de olhos. Minha mãe, coitada, ficava abalada a cada visita. Aqueles
dias amargos, sem perguntas nem respostas, aumentaram ainda mais a minha
apatia, acompanhada agora de uma interminável tristeza. Queria meu pai de volta,
precisava dele, sonhava com ele, chorava por ele...
No décimo dia de UTI, uma
sexta-feira, cheguei ao hospital com uma fé inesperada de que o encontraria
melhor. Em pé ao seu lado, segurando sua mão, eu fazia perguntas e orientava-o
a responder com os olhos, piscando uma vez para o sim e duas para o não. Todas
as minhas tentativas resultaram infrutíferas. Voltei desanimado ao trabalho. No
início da noite, retornei e prostrei-me ao seu lado. Segurei sua mão e senti o
que de fato é a mão de um trabalhador incansável. Uma enfermeira se aproximou e
disse que eu tinha apenas vinte minutos, o horário de visita estava acabando.
Fiquei observando outros pacientes, sofrimentos anônimos. Ouvi, repentinamente,
um sussurro vindo dele. Colei meu ouvido na sua boca. Ele continuou falando
baixinho, um som quase inaudível. Pensei
em chamar um médico, mas não me mexi. Olhei dentro dos olhos dele, meu coração
apertado, a cabeça confusa. Ele sussurrou novamente e eu tive a impressão de
que me chamara pelo meu nome e, em sem seguida, o da minha mãe. Uma enfermeira
que passava por ali me viu quase debruçado sobre ele e entrou no quarto.
– O que houve? Perguntou ela.
– Meu pai falou...
muito baixinho, mas falou...
– Tem certeza? Vou
chamar um médico.
Chegaram dois médicos e
perguntaram o que havia acontecido. A reação inesperada do meu pai, disseram,
não era garantia de recuperação, mas também não descartaram tal possibilidade. A
reação dele fora puro impulso inconsciente, como mover uma perna ou piscar um
olho. Um ato involuntário, desprovido de significado.
Podia ser para eles, não para
mim. Haveria alguma chance de ele voltar à consciência? Para os médicos, não.
Quando cheguei em casa, procurei passar otimismo e esperança para minha família.
Não havia como negar que era uma melhora e todos receberam a notícia como um
aviso de Deus para continuarmos na fé. No dia seguinte iríamos bem cedo ao
hospital na certeza de que sua recuperação teria continuidade e em breve ele
voltaria para casa. Fomos todos dormir já contando com a reviravolta e fazendo
planos para recebê-lo. Demorei a dormir. Sonhei com ele sentado à minha frente
contando que estava bem e que logo voltaria para casa. Fui despertado pelo
barulho do telefone, a família toda. Puxei o aparelho do gancho já sabendo o
que ouviria.
A dor da perda não conhece
limites, não se deixa dominar por efeitos anestésicos. Ela é cruel e sua
crueldade não se apaga com lágrimas e soluços. Foi o dia mais longo da minha
vida. Viver é difícil, morrer dá trabalho. A morte não manda recados e quando
chega não nos poupa dos detalhes, dos preparativos, do inconformismo. Toda
morte traz uma burocracia sem sentido, esforços sem recompensas. Impossível
esperar que todos os que ficam estejam preparados para as providências
inadiáveis. O escolhido fora eu. Comprar caixão, contratar funerária, preparar
documentos, atestado de óbito, preparar o corpo, o velório, o enterro. Não
pensar, não sentir. Fazer, fazer, fazer...
O caixão colocado sobre uma
bancada branca no centro da capela sendo preparado. O corpo já lavado, a melhor
roupa colocada. Flores preenchendo os espaços entre a madeira e o corpo. Flores
decorando o salão. O corpo enfim calmo, cumprindo seu último papel. Participei
de tudo, providenciei tudo e agora, à espera da família, dos convidados,
observando as senhorinhas dando os últimos retoques e meu pai ali sem vida, sem
respostas. O cansaço me dominando e a dor lá, inquieta, à espreita, aguardando
o melhor momento para transbordar. Minha mãe chegou amparada pelas minhas
irmãs. Postou-se ao lado do caixão e ali ficou durante todo o velório. Calada,
chorando baixinho, vez em quando tocando a testa dele, acariciando suas mãos
inertes. Houve um momento em que eu vi apenas os dois numa conversa muda, sem
perguntas nem respostas. Sem reprovações, sem questionamentos.
O enterro foi rápido, o sol castigando
cada um dos presentes. Passei por tudo como se estivesse dopado, anestesiado,
esperando o momento de poder chorar sozinho. Encarar a dor em toda a sua
plenitude. Meu pai se fora. Eu não tinha mais a quem fazer as perguntas mais
bizarras ou inoportunas com a certeza de que sempre obteria respostas,
satisfatórias ou não. Sem saber o que de fato ele pensava sobre mim. Não
passaria mais em frente dele desfilando meus enigmáticos olhos verdes. Eu, já encarcerado
dentro de mim mesmo. Aí, o obscurantismo se aprofundou. Sugou-me como um
parasita durante todo o tempo em que esteve presente sem, no entanto, apagar o
amor e a admiração que sempre nutri e nutrirei por meu pai.
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