quarta-feira, 25 de maio de 2022

CAPÍTULO 8 - PAI HERÓI



Capítulo 8 - Pai herói

 


Eu estava com vinte anos e ainda morava na Vila Esperança. Muita coisa havia mudado por lá. O campo de várzea aos poucos deixava de existir. Uma construtora havia comprado o terreno e dividira-o em lotes, para construção de casas populares. O sítio do seu Tobias também não resistira à expansão imobiliária. A castanheira, o pântano de taboas, o abacateiro e as abelhas carvoeiro cederam espaço às escavadeiras da construtora responsável pelo lançamento do Conjunto Residencial Jardim dos Canários, um imponente pombal de cinco prédios de oito andares com apartamentos de dois dormitórios onde nem canário existia mais. Os meninos mais velhos estavam quase todos casados, outros haviam mudado, dois foram presos e os demais estavam trabalhando. Arrumei emprego em um banco e parei de estudar. Ainda influenciado pelo assalto, pouco saía de casa, principalmente à noite.

 

O trabalho no banco não me agradava e eu não tinha quase nenhuma afinidade com as pessoas que trabalhavam comigo. Passava o tempo todo sozinho, não namorava nem participava de nada que envolvesse pessoas. Foi um período obscuro na minha vida, minha idade média.  Período em que mais se acentuou o meu distanciamento da vida real e a crescente apatia diante do meu papel no mundo e na sociedade. O regime militar ainda dava as cartas na vida política do país sob o comando do general Ernesto Geisel, o "alemão". Presidente da Petrobrás no governo de seu antecessor, Garrastazu Médici, ele teve o apoio decisivo de seu irmão Orlando Geisel, ministro do Exército de Médici, para chegar à presidência pela Aliança Renovadora Nacional, derrotando Ulisses Guimarães, do MDB. Assumiu a presidência em março de 1974 e teve seu governo marcado pelo início de uma abertura política e a amenização do rigor da ditadura militar brasileira, mesmo encontrando forte oposição dos políticos da linha dura. Tudo isso, porém, não fazia a menor diferença para mim, envolto na minha própria concha e alheio a tudo que se passava além das fronteiras de Vila Esperança. A única coisa que permanecia inalterada era a admiração por meu pai.

 

Ele continuava lutando para manter a família, em variadas atividades de ganha pão. De cobrador de ônibus passou a dono de uma banca de jornais e logo depois a cambista de jogo de bicho. Exerceu todas essas funções com muita dignidade e honestidade de causar inveja a um Mahatma Gandhi. Meu pai era meu ponto de equilíbrio, mesmo que já não nos falássemos com a mesma frequência e franqueza da minha infância. Falta de franqueza, na maioria das vezes, da minha parte. Apesar da idade, ele mantinha o mesmo ritmo da juventude e não se abalava com as dificuldades financeiras sempre presentes na vida da família. Comprara a casa de três cômodos onde morávamos de aluguel. Com a venda de parte do terreno, construiu um banheiro interno e mais dois quartos, além da reforma da cozinha e a construção de uma garagem para acomodar a Brasília 73 seminova. Com a crise do petróleo, comprou uma moto de 250 cilindradas. Com ela circulava muito além de Vila Esperança, espalhando esperança a todos seus apostadores e clientes fiéis. Muita gente torcia o nariz para sua atividade profissional, nada que o abalasse. Muito menos a mim que nunca tive vergonha de nada feito pelo meu pai. Todo trabalho, dizia ele, é digno; indigno, é não trabalhar.

 

Vocês, devem ter percebido que eu pouco falo da minha mãe. Não significa que eu não tenha por ela admiração, amor ou os sentimentos que uma mãe desperta em seus filhos. Tenho-os todo, sempre os tive! No entanto, nada do que marcou minha vida, minha sina, meu desapegar do verdadeiro papel que deveria ter na história provém de minha mãe, da minha relação com ela para ser mais preciso. A paternidade tem matizes profundamente diferentes da maternidade. A relação pai-filho é profundamente diferente da relação mãe-filho. Na minha geração, a presença do pai na casa era profundamente diferente do que é na geração atual. Pai, muito geralmente, era amado ou odiado. Raras vezes tinha espaço para meio termo ou nuances entre esses dois polos. Naquele momento da minha vida eu precisava muito do meu pai. Tinham coisas que eu só conseguia conversar com ele, coisas de homem. Meus irmãos e irmãs tinham seus próprios mundos. Ele nunca negou respostas às minhas perguntas. Mesmo que não fossem as que eu esperava, eram respostas, significava que ele dava atenção a minhas dúvidas. À medida que fui crescendo, a quantidade de perguntas foi diminuindo. Crianças combinam com perguntas, adolescentes, com suas próprias respostas.  O destino, entretanto, sabe como ser cruel e dispõe de todas as armas para isso. Quando eu mais precisava de meu pai, o destino tratou de tirá-lo de mim. Não satisfeito, deixou em mim uma profunda marca interna. Usando meu pai como instrumento, plantou na minha mente, na minha alma, a semente da confusão psicológica que um dia cresceria e mudaria drasticamente o rumo da minha vida.

 

Em todas as suas andanças como mensageiro da sorte na sua motocicleta, ao final do dia ele se queixava de dores no peito e ouvia de minha mãe sempre a mesma recomendação. “Procure um médico, meu velho”. A dedicação ao trabalho e a necessidade de manter a família faziam-no adiar dia após dia a ida ao médico. Até que a notícia chegou em casa antes dele. Ele passava o dia todo fora, algumas vezes não aparecia nem para almoçar. Geralmente comia em algum boteco, onde aproveitava para recolher as apostas dos frequentadores. Naquela tarde, ele parou num boteco no bairro do Taboão, em São Bernardo do Campo. Comeu um “pf” e um salgadinho. Quando ia subir na moto, começou a passar mal e foi socorrido por dois homens que estavam na frente do bar. Dali foi levado a um pronto socorro e, em seguida, a um hospital. Ficamos sabendo que ele sofrera um infarto e estava na UTI.

 

Longos dias se passaram e seu quadro não se alterava. Felizmente, o hospital ficava próximo ao banco onde eu trabalhava. Podia visitá-lo todos os dias no horário do almoço e ao final da tarde. Eram dias penosos. Acostumado à vida sempre ativa de meu pai, não me conformava em vê-lo deitado e todo entubado, sem a mínima reação, um gesto que fosse, um piscar de olhos. Minha mãe, coitada, ficava abalada a cada visita. Aqueles dias amargos, sem perguntas nem respostas, aumentaram ainda mais a minha apatia, acompanhada agora de uma interminável tristeza. Queria meu pai de volta, precisava dele, sonhava com ele, chorava por ele...

 

No décimo dia de UTI, uma sexta-feira, cheguei ao hospital com uma fé inesperada de que o encontraria melhor. Em pé ao seu lado, segurando sua mão, eu fazia perguntas e orientava-o a responder com os olhos, piscando uma vez para o sim e duas para o não. Todas as minhas tentativas resultaram infrutíferas. Voltei desanimado ao trabalho. No início da noite, retornei e prostrei-me ao seu lado. Segurei sua mão e senti o que de fato é a mão de um trabalhador incansável. Uma enfermeira se aproximou e disse que eu tinha apenas vinte minutos, o horário de visita estava acabando. Fiquei observando outros pacientes, sofrimentos anônimos. Ouvi, repentinamente, um sussurro vindo dele. Colei meu ouvido na sua boca. Ele continuou falando baixinho, um som quase inaudível.  Pensei em chamar um médico, mas não me mexi. Olhei dentro dos olhos dele, meu coração apertado, a cabeça confusa. Ele sussurrou novamente e eu tive a impressão de que me chamara pelo meu nome e, em sem seguida, o da minha mãe. Uma enfermeira que passava por ali me viu quase debruçado sobre ele e entrou no quarto.

 

     O que houve? Perguntou ela.

 Meu pai falou... muito baixinho, mas falou...

 Tem certeza? Vou chamar um médico.

 

Chegaram dois médicos e perguntaram o que havia acontecido. A reação inesperada do meu pai, disseram, não era garantia de recuperação, mas também não descartaram tal possibilidade. A reação dele fora puro impulso inconsciente, como mover uma perna ou piscar um olho. Um ato involuntário, desprovido de significado.

 

Podia ser para eles, não para mim. Haveria alguma chance de ele voltar à consciência? Para os médicos, não. Quando cheguei em casa, procurei passar otimismo e esperança para minha família. Não havia como negar que era uma melhora e todos receberam a notícia como um aviso de Deus para continuarmos na fé. No dia seguinte iríamos bem cedo ao hospital na certeza de que sua recuperação teria continuidade e em breve ele voltaria para casa. Fomos todos dormir já contando com a reviravolta e fazendo planos para recebê-lo. Demorei a dormir. Sonhei com ele sentado à minha frente contando que estava bem e que logo voltaria para casa. Fui despertado pelo barulho do telefone, a família toda. Puxei o aparelho do gancho já sabendo o que ouviria.

 

A dor da perda não conhece limites, não se deixa dominar por efeitos anestésicos. Ela é cruel e sua crueldade não se apaga com lágrimas e soluços. Foi o dia mais longo da minha vida. Viver é difícil, morrer dá trabalho. A morte não manda recados e quando chega não nos poupa dos detalhes, dos preparativos, do inconformismo. Toda morte traz uma burocracia sem sentido, esforços sem recompensas. Impossível esperar que todos os que ficam estejam preparados para as providências inadiáveis. O escolhido fora eu. Comprar caixão, contratar funerária, preparar documentos, atestado de óbito, preparar o corpo, o velório, o enterro. Não pensar, não sentir. Fazer, fazer, fazer...

 

O caixão colocado sobre uma bancada branca no centro da capela sendo preparado. O corpo já lavado, a melhor roupa colocada. Flores preenchendo os espaços entre a madeira e o corpo. Flores decorando o salão. O corpo enfim calmo, cumprindo seu último papel. Participei de tudo, providenciei tudo e agora, à espera da família, dos convidados, observando as senhorinhas dando os últimos retoques e meu pai ali sem vida, sem respostas. O cansaço me dominando e a dor lá, inquieta, à espreita, aguardando o melhor momento para transbordar. Minha mãe chegou amparada pelas minhas irmãs. Postou-se ao lado do caixão e ali ficou durante todo o velório. Calada, chorando baixinho, vez em quando tocando a testa dele, acariciando suas mãos inertes. Houve um momento em que eu vi apenas os dois numa conversa muda, sem perguntas nem respostas. Sem reprovações, sem questionamentos.

 

O enterro foi rápido, o sol castigando cada um dos presentes. Passei por tudo como se estivesse dopado, anestesiado, esperando o momento de poder chorar sozinho. Encarar a dor em toda a sua plenitude. Meu pai se fora. Eu não tinha mais a quem fazer as perguntas mais bizarras ou inoportunas com a certeza de que sempre obteria respostas, satisfatórias ou não. Sem saber o que de fato ele pensava sobre mim. Não passaria mais em frente dele desfilando meus enigmáticos olhos verdes. Eu, já encarcerado dentro de mim mesmo. Aí, o obscurantismo se aprofundou. Sugou-me como um parasita durante todo o tempo em que esteve presente sem, no entanto, apagar o amor e a admiração que sempre nutri e nutrirei por meu pai.





 

 


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