quinta-feira, 5 de maio de 2022

CAPÍTULO 7 - CICATRIZ - PARTE 2

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Capítulo 7 - Cicatriz - parte 2


Eu sentia o suor escorrer pelo meu rosto, misturado com sangue. Ele pegou um lenço do bolso da camisa dele que agora estava comigo.

 

Limpa a cara aí, moleque.

 

Limpei o rosto da melhor forma que pude e cometi a besteira de devolver o lenço. Senti o impacto do murro entre o nariz e a boca.

 Tá tirando uma com a minha cara, moleque? Enfia esse lenço no rabo!


Isso agitou ainda mais os outros bandidos. Pedi a Deus, mais uma vez, para me ajudar. A coisa parecia estar saindo do controle. Os três começaram a discutir e o assunto da discussão era eu; mais precisamente, minha vida. Um dos moleques, o mais exaltado, começava a dar mostras de que ia peitar o chefe. Se ele recuasse seria o meu fim.

 

Se você não quer matar, diz aí o que vamos fazer com ele?

 

O moleque estava transtornado, provavelmente por efeito de alguma droga. Puxou-me pelo pescoço, arrancou os botões da minha camisa com a faca. Puxou meu rosto na direção do seu líder, soltando uma saraivada de palavras desconexas.

 

Olha o olhinho dele que gracinha! Deixa eu comer o rabo da bonequinha de olho verde!


É isso aí! disse o outro menor nós não mata, mas nós come!

 

A discussão recomeçou, e também as agressões. Cada vez que um deles levantava a voz, dava um tapa na minha cara. O outro ficava passando a faca na minha barriga, como se fosse me furar. Até o momento em que o chefe resolveu acabar com a discussão. 


Fui levado para um canto e encostado no muro da fábrica. Pronto, o que quisessem fazer comigo fariam. Devia passar da meia-noite e a impressão é que já estava há dias nas mãos deles. Em pensamento, pedia a Deus para me libertar daquele sofrimento, ou então, acabar logo de uma vez com aquilo. Uma revolta sem precedentes instalava-se mansamente dentro de mim, à medida que eu constatava a total impotência diante de uma decisão dessa magnitude estar caprichosamente colocada nas mãos de três assassinos. 


Meu Deus, eu não aceito isso, não aceito ter a continuidade ou não da minha vida sendo decidida por um vagabundo que nada de bom traz ao mundo! Não aceito ter minha vida encerrada tão precocemente e de maneira tão banal! O Senhor disse não matarás. Não permita então que eu seja morto em cima de um morro, atrás do muro de uma fábrica, na completa escuridão! 


Que vida eu tive? O que são dezenove anos? O que fiz eu até agora para tentar fugir da minha sina de passar pelo mundo sem produzir nada? Eu ainda não amei, já estive com uma mulher, mas ainda não sei o que é, o que significa ter uma mulher. Para onde vai uma alma tão incompleta? Quem é esse homem para decidir, para ter nas mãos o poder de decidir se eu continuo ou não vivendo? Eu, que ainda não vivi nada, que ainda não sei realmente o que é a vida, que significado ela tem, qual a minha importância no mundo, partirei sem respostas? O Senhor estará me esperando para dá-las? Não, Senhor, eu não aceito, me deixe viver mesmo que eu ainda não saiba para quê...

 

Fica aqui, encostado no muro. Não se mova, não pisque, não banque o esperto porque eu vou tentar convencer aqueles dois a não te apagar. Não porque eu seja bonzinho, não por que você mereça. É só para mostrar praqueles dois quem é que manda aqui.

 

Ele foi ao encontro dos dois e me deixou sozinho feito uma estátua colada no muro da fábrica. Agora é que eu não conseguia pensar mais em nada. Lembrei de meu pai com o ouvido colado ao rádio; minha mãe na cozinha cantando enquanto preparava o almoço; meus irmãos e irmãs cantando as cantigas de roda no pátio da escola; minha primeira masturbação; a única mulher a me sentir dentro dela; as defesas incríveis do Mão de Onça; a cara ensanguentada de Zé Rubens; o anjo Gabriel voltando ao Senhor... Segundos que pareciam uma eternidade. Quando o bandido voltou, eu já estava conformado com o meu destino.

 

Olha aqui, presta atenção, aqueles dois tão querendo te matar e eu segurei até onde deu. Você vai fazer o seguinte: vai descer o morro devagar, sem olhar pra trás; se olhar, vai morrer. Quando chegar na rua, continua andando devagar, sem olhar pra trás e pega seu rumo. É a última chance que você tem. O único que está com revólver sou eu, se você não olhar para trás, não vai levar bala. Agora desce, do jeito que eu mandei e deixa comigo que eu seguro as pontas.

 

Assim que ele terminou de falar, vi seu rosto num relance por baixo da meia fina. Nada que pudesse identificá-lo, mas o suficiente para ver a cicatriz atravessando a testa dele em direção ao olho esquerdo. Dei os primeiros passos hesitantes e ouvi a discussão atrás de mim. Desci o barranco quase sem respirar e sem olhar para trás. Na rua, caminhei até a esquina na frente da fábrica. A partir daí corri como nunca havia corrido na vida. Estava livre, mas ainda não podia comemorar. Tinha de buscar minha irmã sem saber que hora era, sem saber se ela ainda estava na escola.


Ao me ver, todo ensanguentado, descalço, camisa aberta no peito e aquela calça cor de rosa suja e ridícula, ela quase desmaia. Contei o acontecido, sem entrar em detalhes. Ela não queria voltar a pé, mas não havia mais ônibus nem ninguém na escola que pudesse dar uma carona. Fomos até a garagem da empresa de ônibus. Contamos o que havia acontecido e perguntamos se havia algum ônibus ou carro que pudesse nos levar para casa. Minha irmã chorava muito, mas não conseguiu sensibilizar o funcionário. Teríamos de voltar a pé, com medo ou sem medo.

 

Passei meu braço em torno do dela e começamos a andar o mais rápido que podíamos, agora, pelo caminho que deveria ter feito da primeira vez. Estávamos no meio da descida que nos levaria até nossa casa quando, do outro lado da rua, num terreno onde ficavam diversas carretas, avistei os três bandidos debaixo de uma delas. Estavam concentrados, talvez contando o dinheiro dos assaltos que haviam praticado. Segurei a respiração, coloquei meu corpo de forma que minha irmã não pudesse ver nada. Aceleramos os passos e em menos de cinco minutos chegamos em casa.

 

Demorei a dormir naquela noite. Quando adormecia o rosto do ladrão com aquela cicatriz enorme aparecia em meus sonhos e eu acordava sobressaltado. No outro dia acordei com o rosto inchado, quase irreconhecível e, por sorte, nenhum dente quebrado. Fiquei mais de duas semanas com aquela cara de sobrevivente do Vietnã. Durante muito tempo ela habitou minha mente, tumultuou meus sonhos, atrapalhou minha vida. Tinha medo de sair à noite, medo de voltar para casa tarde. Parei de estudar. Quase parei de viver. Foram muitos anos tentando me livrar das sequelas psicológicas. Como tudo na vida passa, isso também passou.

 

Uns dois ou três anos depois, eu estava dentro de um ônibus de volta para casa numa tarde qualquer de um mês qualquer. O ônibus estava e cheio e eu em pé no corredor, segurando o cano de um dos assentos. Ouvi o barulho da catraca e uma voz aparentemente conhecida pedindo licença para os passageiros. Quando passou por mim, puxou o cordão da campainha e esbarrou levemente no meu corpo. Olhei para ele o tempo suficiente para reconhecer aquela cicatriz na testa dele. Comecei a suar frio, senti o chão faltar e devo ter ficado tão branco que uma moça me deu o lugar dela no assento. Perguntou se eu estava passando mal e eu respondi o mais baixo que pude: “vai passar”. O ônibus parou, ele desceu. Voltei a respirar novamente, ainda com a imagem daquela cicatriz nas minhas retinas.





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