terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

CAPÍTULO 2 – Zé Rubens, o imperador – Parte 2

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Zé Rubens, o imperador – Parte 2

 

– Primeiro de abril! Primeiro de abril! Ontem foi primeiro de abril, idiota dos olhos verdes!

 

A voz dele me irrita, tudo nele me irrita, principalmente sua gordura desleixada. A vontade que eu tenho é de esmurrar essa barriga balofa! Mas ele é mais velho e mais forte do que eu. Não tenho opção a não ser me submeter a todos os seus caprichos e maldades.

 

– Leite Glória, vamos aí, leite Glória!

 

Leite Glória sou eu. Ganhei esse ridículo apelido quando entrei na escola. Quem viveu nesta época sabe do que estou falando. Leite em pó Glória, desmancha sem bater, berra o reclame, e o gordo escroto do Zé Rubens que botou esse apelido em mim. O mesmo Zé Rubens que acaba de fazer mais uma brincadeira idiota com o primeiro de abril. E eu tenho de rir, porque se não rir, ele me esfola. E me esfolar não é das tarefas mais difíceis, qualquer um esfola o Leite Glória.

 

Saímos da escola agora e estamos indo para casa. Ele não mora perto da minha casa, mas me faz andar por esse caminho todo dia, carregando as coisas dele, uma sacola pesada cheia de livros e cadernos, mais a lancheira dele, a minha bolsa e a minha lancheira também. Imagina alguém com o meu porte físico tentando equilibrar tudo isso e ainda tendo de se submeter às torturas do gordo do Zé Rubens! Ele diz que eu sou o escravo dele e que eu tenho de carregar as coisas dele porque ele é o meu imperador. De merda! Imperador de merda que ele é! Só que eu não posso dizer isso para ele. Sou fraco, nem sei quanto eu peso. Ele dá uns cinco de mim. Por isso, tenho de me sujeitar a tudo e não posso contar a ninguém. 

 

Ele já me jurou. Se contar, é pau na certa! Fico pensando o que posso fazer para me livrar dele e a única coisa que me vem à cabeça é abandonar a escola. Só assim ficaria distante dele e livre de todas as coisas desagradáveis que sou obrigado a passar. Mas nem isso posso, minha mãe me mata! E depois, isso não é justo. Eu gosto de estudar, gosto de aprender coisas novas. Queria mesmo é aprender como me livrar do Zé Rubens, imperador de merda! Seria justo eu deixar a escola e ele continuar? De jeito nenhum, ele não gosta de estudar, é burro que nem uma porta! O que ele gosta mesmo é de cabular aula e de maltratar os mais fracos. Há dois anos venho sofrendo com ele. Será que ele não vai encontrar outro menino mais fraco que eu, outro Leite Glória? Acho que não, a dura verdade é que não tem ninguém na fila para assumir meu lugar.

 

Ontem foi primeiro de abril de 1964, estou com quase dez anos, vou fazer em agosto. Para o meu azar, no dia que o Getúlio Vargas se matou! Que mais eu posso esperar da vida, fraquinho do jeito que sou, escravo do merda do Zé Rubens e ainda tendo nascido no dia que o Getúlio Vargas se matou?

 

– Para aí, Leite Glória! Que história é essa de guerra?

– Não é guerra, é revolução...

– Guerra, revolução, não é tudo a mesma merda? No Brasil não tem guerra, da onde você tirou essa ideia?

– Foi meu pai que contou, derrubaram o Jango...

– Que Jango?

– João Goulart, o presidente da república.

– Quem derrubou o presidente?

– Os militares.

– Deixa de ser besta, ontem foi primeiro de abril, pegaram você, seu bocó...    

– Não é mentira. Foi meu pai que falou, ele ouviu no rádio. Meu pai não mente, ele detesta mentira, tá!

– Tá me chamando de mentiroso, seu bostinha?

 

 

Pronto, fiz besteira, falei mais alto do que devia. Isso ele não perdoa. Não posso mais voltar para casa por este caminho, não posso mais voltar com ele por caminho nenhum... Depois do que eu falei, ele me derrubou e sentou em cima de mim de um jeito que eu não consigo me mexer. Agora estou todo dolorido e sem poder me mexer, debaixo dessa bunda enorme. Tenho de pôr um fim nisso, mas como? Queria ter coragem de socar ele, eu queria poder sair de debaixo dele e chutar sua barriga de merda até ele rebentar, mas ele é muito mais forte que eu. Tenho de passar essa humilhação de ficar o tempo todo com ele trepado em cima de mim, peidando em cima de mim e rindo sua risada nojenta. Se eu fosse adulto, era capaz de matar ele, mas Deus não perdoa quem mata. Não matarás, é um dos dez mandamentosEstá escrito na Bíblia, meu pai me falou. Será que Deus acha justo eu passar por isso? Por que ele não me liberta? Senhor, libertai os mais fracos!

 

Meu pai falou que estão dizendo que a revolução foi dia 31, mas a verdade é que foi ontem, primeiro de abril. Estão dizendo que a revolução foi anteontem para ninguém dizer que foi no dia da mentira.  Meu pai me falou e eu acredito em tudo o que ele fala. Ele escuta tudo no rádio lá de casa. Só não entendi uma coisa: como é que pode um exército menor, com menos armas, derrotar outro maior e mais preparado? Como pode o fraco vencer o forte? Fraco não vence nada, fraco é sempre dominado. Que nem eu! Fraco está condenado a obedecer, a ficar embaixo de um Zé Rubens qualquer. Quem não tem recurso para fazer uma revolução não se revolta. Como pode o presidente fugir tendo o exército maior e mais forte do lado dele? Como pode um exército Leite Glória fazer uma revolução? 



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