quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

CAPÍTULO 3 - Um enviado de Deus - Parte 1

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Um enviado de Deus - Parte 1

 

O homem apareceu na rua logo pela manhã, quando estávamos tomando café antes de ir à escola. Minha mãe viu ele pela fresta da janela. Estava sentado na calçada com o olhar perdido. Suas roupas eram imundas, trazia um saco de papel sob o braço e a expressão perdida. Um desconhecido.

 

De outras janelas os vizinhos também observavam, igualmente sem saber o que fazer. Eu nunca tinha visto ninguém naquela situação. Morávamos em Vila Esperança, um lugar pobre de Diadema. Nos anos 1960, ser pobre era uma condição natural. Existiam os muito ricos, os ricos, os remediados, os pobres e os mais pobres.

 

Miséria não fazia parte do vocabulário das crianças de Vila Esperança. Por isso, era muito difícil nos defrontarmos com uma pessoa naquele estado. A primeira coisa que vinha à cabeça de todos era que poderia ser um ladrão, alguém que estivesse espionando todas as casas para poder agir no momento certo.

 

A vila era pequena e afastada do centro, quase uma região rural. Meu pai saía de madrugada, carregando uma grande quantidade de tralhas para ganhar a vida vendendo sanduíches na porta de uma fábrica. Na falta do homem da casa, minha mãe hesitava sobre o que fazer em relação ao desconhecido.

 

Passamos por ele, uma leva de crianças rumo à escola. Sentado no meio-fio ele se limitava a observar o deslocamento dos pequenos estudantes. Caminhei lentamente, olhando com o canto do olho pude ver que ele não era velho, tinha uns dezoito anos, certamente. Devia estar faminto.

 

Tive vontade de voltar e pedir para minha mãe dar a ele algo de comer, mas o receio de ele não ser o que parecia me fez desistir da ideia. Ao voltar da escola, depois das agruras diárias proporcionadas por Zé Rubens, o homem ainda estava lá. Agora, meus receios aumentavam. Procurei passar por ele o mais rápido que pude. Parei ao ouvir sua voz pelas minhas costas.

 

– Ei garoto, você poderia me ajudar? Não tenha medo, não vou lhe fazer mal, estou apenas com fome e sem dinheiro.

 

– Como posso lhe ajudar?

 

– Você mora naquela casa ali, vi quando você saiu de manhã. Poderia falar com seus pais, ver se tem qualquer coisa que eu possa comer?

 

– Não sei não... 

 

– Está com medo? Fica tranquilo, eu não sou assaltante. Qual o seu nome?

 

– Rodrigo. O que você tem nesse pacote?

 

– Posso garantir que não é uma arma. Já falei, eu não sou ladrão, sou trabalhador...

 

– Então por que você não está trabalhando? Hoje é terça-feira.

 

– Eu perdi o emprego e está muito difícil de encontrar outro.

 

– Onde você trabalhava?

 

– No sindicato. Sabe o que é um sindicato?

 

– Mais ou menos.

 

– Por que mais ou menos? Ou sabe ou não sabe. Você está na escola, deveria saber. Nunca falaram nada sobre sindicato a vocês?

 

– Já, mas eu não entendi muito bem. Minha professora disse que é um lugar feito pra defender os trabalhadores das fábricas, quer dizer, não só os das fábricas, mas principalmente os das fábricas. Meu pai já trabalhou em fábrica, mas depois que ele foi mandado embora não conseguiu mais outra fábrica pra trabalhar e agora ele vende sanduíche na porta da mesma fábrica onde ele trabalhava. Aí, eu fico pensando, se o sindicato foi feito pra defender os trabalhadores, por que ele não defendeu o meu pai? Você sabe por quê?

 

– Depende, não sei qual o motivo do seu pai ser mandado embora, ele fez alguma coisa errada?

 

– Não, meu pai nunca faz nada errado. Falaram pra ele que ele estava despedido e disseram pra ele passar no pessoal pra acertar a conta. Não explicaram o motivo. Aí eu fico pensando, acho que você não vai saber responder a minha pergunta porque a sua situação é pior do que a do meu pai.

 

– Por quê?

 

– Ora, se você trabalhava no lugar que foi feito pra defender os trabalhadores, por que eles mandaram você embora se você é trabalhador também? Você fez alguma coisa errada?

 

– Não, eu fui mandado embora justamente porque estava fazendo a coisa certa. Quem me mandou embora não foi o sindicato, foi o governo. Não só eu, muitos outros que trabalhavam comigo.

 

– Ué, e o governo pode mandar vocês embora se vocês não trabalhavam para o governo?

 

– Esse governo pode não só mandar embora como também impedir que você arrume outro emprego. É por isso que eu estou desempregado. Vou ter de ir embora de São Paulo se quiser trabalhar de novo. Posso até ser preso se ficar.

 

Aquilo que ele falou me deixou sem entender uma porção de coisas. Eu queria que ele me explicasse melhor, mas ele estava com tanta fome que eu resolvi levar ele logo pra minha casa. Quando chegamos, minha mãe ficou muito nervosa, mas não negou um prato de comida. Pediu apenas para ele ir embora assim que acabasse de comer.

 

Ele saiu afobado e nem deu tempo de eu perguntar o nome dele e o que ele tinha naquele pacote. Quando ele saiu, minha mãe não deixou eu ir atrás dele. Segurou eu e meus irmãos dentro de casa até ter certeza que ele tinha ido embora. Depois disso, juntou gente na rua e ficou todo mundo falando dele.

 

Eu, cheio de curiosidade, mas minha mãe não deixava eu sair. Assim que meu pai chegou e ficou sabendo, ele fez cara de bravo e brigou com minha mãe, não por ela ter dado comida, mas por ter aberto a porta da casa a um desconhecido. Depois ele ficou mais calmo e eu disse que a culpa tinha sido minha, eu é que tinha trazido o desconhecido para porta de casa.

 

Ele brigou comigo também e disse pra eu nunca mais fazer aquilo. Depois ele ficou mais calmo de novo e me explicou tudo. Então eu entendi o porquê daquela agitação toda. O governo tinha mandado o desconhecido embora porque ele era comunista e fez muito bem porque aquilo era preciso para manter a revolução que tinha começado no dia da mentira.

 

Então eu lembrei que meu pai tinha me falado sobre a revolução de primeiro de abril e perguntei pra ele por que ele estava defendendo a revolução que ele mesmo tinha dito que era uma revolução de mentira. Ele não ficou zangado comigo por causa da pergunta, meu pai nunca se zanga quando a gente faz alguma pergunta. Ele gosta de mostrar que sabe tudo. Por isso ele gosta tanto de ficar ouvindo o rádio quando está em casa.

 

Como ele não zangou, eu continuei perguntando e fiquei sabendo que quando o presidente Jango foi mandado embora, estava tudo muito confuso no país, justamente por causa que todo mundo desconfiava que o presidente era comunista. Foi para impedir os comunistas de tomar o poder que foi feita a revolução por um exército mais fraco do que o exército do presidente.

 

Aí, eles colocaram um tal de Marechal Castello Branco como presidente. Meu pai gosta de explicar bem as coisas, mas eu ainda continuei sem entender por que ele passou a defender os militares e, principalmente, por que os comunistas eram uma ameaça. Na verdade, eu ainda não conseguia entender direito o que era um comunista. Pena que o desconhecido não estava mais lá pra me explicar.

 

No dia seguinte, eu chamei o Zé Rubens de comunista e tomei um soco no olho. Aquilo doeu muito e eu vim o caminho todo sozinho, pensando como fazer para esconder da minha mãe o olho roxo. Sujei as mãos de terra e passei na roupa e no rosto, principalmente em volta dos olhos. Ia dizer para ela que tinha caído, mas não sei se ela ia acreditar.

 

Quando estava perto de casa eu vi o desconhecido de novo e ele também me viu. Quis saber por que eu estava com um olho roxo e todo sujo de terra. Antes que ele perguntasse de novo, eu perguntei o que era um comunista e o que ele tinha dentro daquele pacote. Papel, ele respondeu.

 

Aí ele abriu o pacote e me mostrou um monte de maços de papel. Peguei um pra ver, estava escrito assim, em letras bem grandes e com um ponto de exclamação maior ainda: Diga não à Ditadura Militar! Era uma espécie de título. Debaixo dele tinha um texto comprido que eu tive preguiça de ler.

 

O desconhecido disse que aquilo se chamava panfleto. E eu, que já estava sem entender o que era comunista, fiquei menos ainda sem entender o que era ditadura. Primeiro ele explicou o que era ditadura pra depois me dizer o que era comunista.

 

– Quando um governo governa sem ouvir o povo, sem atender as necessidades do povo, quando esse governo toma decisões pensando nos seus próprios interesses e escraviza seu povo, quando não cumpre o que está na constituição e cria suas próprias leis pra se manter no poder e não respeita a classe trabalhadora que é a maioria do povo, isso é uma ditadura. É ditadura porque são eles que ditam as regras sem respeitar o poder que deveria emanar do povo, entende?

 

– Mais ou menos... Antes de primeiro de primeiro de abril o Brasil era uma ditadura? Foi por isso que mandaram o Jango embora?

 

– Não, de jeito nenhum! Estão contando isso pra vocês na escola?

 

– Mais ou menos. A professora fala todo dia que a revolução foi necessária pra evitar que o Brasil virasse um país comunista. Por isso, os militares tiveram que mandar o Jango embora e tomar conta do país até o perigo passar. Ela fala que eles estão fazendo isso pra defender o povo. Então, pelo que você falou, os militares fizeram isso pra acabar com a ditadura, mas nesse tal de panfleto que você carrega está dizendo pra dizer não pra ditadura militar. Agora você confundiu toda a minha cabeça, vou ter de perguntar pro meu pai...

 

– Não é nada disso, é justamente o contrário. O João Goulart estava tentando fazer um governo popular, ele estava programando mudanças pra atender o povo e isso contrariava os interesses dos poderosos que armaram um golpe pra tirar ele da presidência. Os militares tomaram o poder e estão implantando uma ditadura. Esses panfletos foram feitos pra alertar o povo e não deixar que sejamos enganados.

 

– E por que você tem de fazer isso escondido? Meu pai ficou bravo porque minha mãe deu comida pra você na porta de casa. Todos os nossos vizinhos estão falando que você é comunista e que vão entregar você pra polícia se você aparecer por aqui de novo. Agora, dá pra você me explicar o que é um comunista? Preciso saber, porque eu não quero ser preso junto com você...

 

Continua na próxima quarta-feira

 









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