quarta-feira, 27 de abril de 2022

CAPÍTULO 7 – CICATRIZ – PARTE 1

 

 Capítulo 7 – Cicatriz – Parte 1

 

Só depois que tudo aconteceu percebi que meu erro foi ter acreditado que estava livre do meu destino. A noite de verão favorecia a minha falta de cuidado por estar muito propícia a caminhadas. Era quase onze da noite e minha irmã ainda não havia chegado da escola. Minha mãe me pediu para buscá-la.

 

O colégio não era muito longe, mas o mais indicado era que eu fosse de ônibus. Quis o destino, porém, que eu considerasse como alternativa ir a pé, cortando caminho por uma rua que não oferecia perigo nenhum se eu tivesse resolvido caminhar durante o dia.

 

Saí sem documentos, de chinelo de dedo, relógio e um radinho de pilhas que pertencia ao meu irmão. O silêncio da noite adormecia meus passos e a música do rádio abafava meus ouvidos. Sentia uma gostosa sensação de liberdade, não por causa da minha calça desbotada e sim pela ausência de compromissos naquela semana específica. Tinha concluído o científico e ainda não havia decidido o que iria estudar. Estava servindo o Tiro de Guerra, apesar da falta completa de um perfil físico de soldado.

 

Virei a esquina e entrei numa rua de terra que passava ao lado de um barranco nos fundos de uma fábrica de peças de carros. Naquele ponto, quase não havia iluminação, era um trecho pequeno. Resolvi entrar ali para recuperar o tempo perdido. Senti um súbito pressentimento e ergui a cabeça.

 

 Tem cigarro?

 

     Era a senha. Os três se aproximaram como gatos. Quando me dei conta, um deles já estava com o revólver encostado na minha cara.

 

 Sobe o barranco! Vamos, pra cima do barranco e calado que é um assalto.

 

     Nem sei como cheguei lá. A escuridão no alto do morro era maior, mesmo assim eles diziam para eu manter os olhos baixos e passar o dinheiro. Justamente o dinheiro que eu não tinha! Sem querer levantei o olhar em direção àquele que parecia ser o líder. Mal vislumbrei seu rosto coberto por uma meia fina quando veio o primeiro soco, indolor tal o medo que me entorpecia.

 

     Cadê o dinheiro, seu merda? Tá gozando da minha cara, soldadinho da porra?      – nova porrada.

 

Mata ele, mata ele! gritavam os outros dois.

 

O motivo da raiva do ladrão era a caderneta do açougue que ele puxou do bolso da minha camisa. Senti o gosto de sangue, mas nada de dor. Minha respiração ofegante parecia atiçar cada vez mais a adrenalina dos outros dois. Também com as cabeças cobertas, eles não paravam de gritar mata, mata! Percebi que eram menores e isso aumentou ainda mais o meu medo.

 

O que eu faço com você, me diz? ele perguntava, me segurando pela gola da camisa sem dar atenção aos comparsas O que você acha que eu devo fazer com um porra dum milico sem dinheiro?

 

Eu estou nas mãos de vocês, não tenho como decidir... falei instintivamente, sem pensar no que dizia.

 

Além de duro, prepotente. Responde só o que eu tô perguntando, filósofo. O que eu faço com um cara sem dinheiro? Que valor tem pra mim um milico sem porra nenhuma a não ser uma caderneta do açougue? Tá querendo pendurar o assalto na conta? Tenho cara de quem faz assalto fiado?

 

Não, eu não tenho valor nenhum pra você e você vai me matar, mas...

 

Mas o quê?

 

Vamo matá ele logo! – gritou um dos moleques assassinos.

 

Silêncio, porra! Deixa eu ouvir o que o milico tem pra dizer. Quem decide se mata ou não mata sou eu. Calados os dois!

 

Percebi que o melhor era também ignorar os pivetes e me concentrar no chefe.

 

Peço desculpas por não ter dinheiro, se tivesse já teria dado... mas se você me matar, vai deixar um corpo pra polícia investigar... se você me deixar ir eu não vou falar nada, não sou dedo duro, não gosto de polícia... não sou milico, só estou no Tiro de Guerra porque sou obrigado...

 

Tá, e o que eu ganho com isso?

 

O rádio, o relógio e a minha roupa. Tá, eu sei que é pouco, mas é só o que eu tenho, se tivesse mais eu dava, sem problema.

 

Um radinho de pilha de merda, um pataco de merda, uma camisa, uma calça desbotada e um chinelo de dedo. Que tesouro! Sua vida vale só isso?

 

No momento sim...

 

 Ele ficou quieto, matutando. Os outros dois, agitados, esfregavam as facas na minha barriga. Pensei em Deus, pensei no Gabriel, seu enviado que um dia me salvou do Zé Rubens...

 

Tira a calça!

 

Estremeci.

 

Senta ali naquela pedra. Tira a camisa e a calça. Vamos fazer uma troca. Sua calça velha pela minha novinha em folha. Sua camisa ordinária pela minha, última moda. Vamo lá, senta aí e vai tirando a roupa. Rápido que eu não posso gastar a noite toda com você, tenho de ganhar a vida. Agora, presta atenção: reza pra sua calça sem vergonha servir em mim, porque senão tu morre!

 

Sentei na pedra, tirei a camisa e a calça. Ele passou o revólver para um dos moleques para poder se vestir. Mesmo com a cabeça baixa pude ver que ele era muito maior e mais forte do que eu. A chance de minha calça servir nele era mínima.

 

Ele olhou para mim assim que colocou a camisa sem abotoar os botões do peito para cima. Ficou justíssima e parece que ele gostou porque realçou seus bíceps e o tórax. Ordenou que eu colocasse as roupas dele enquanto ele vestia minha calça.

 

Nem sei que cor era a camisa dele, a calça era cor de rosa e estava imunda. Minha sorte é que a minha era tipo “boca de sino” e ficava larga em mim. Passou pelas coxas dele, o que me deixou mais aliviado, mas ainda com medo.

 

Tá vendo como eu só tive prejuízo? Te dei uma beca novinha, última moda em troca dessa porcaria de calça velha que mal cabe em mim. Tu tem sorte de eu estar de bom humor hoje...

 

Respirei mais aliviado e ansioso para ele tirar o revólver da mão do moleque.

 

Vamo matá ele agora!

 

É isso aí, pra nós não sobrou nada... Vamo apagá esse cara logo!

 

Calado aí os dois. Quem decide isso sou eu.

 


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