Capítulo 7 – Cicatriz – Parte 1
Só depois que tudo aconteceu percebi que meu erro foi ter acreditado que
estava livre do meu destino. A noite de verão favorecia a minha falta de
cuidado por estar muito propícia a caminhadas. Era quase onze da noite e minha
irmã ainda não havia chegado da escola. Minha mãe me pediu para buscá-la.
O colégio não era muito longe, mas o mais indicado era que eu fosse de
ônibus. Quis o destino, porém, que eu considerasse como alternativa ir a pé,
cortando caminho por uma rua que não oferecia perigo nenhum se eu tivesse resolvido
caminhar durante o dia.
Saí sem documentos, de chinelo de dedo, relógio e um radinho de pilhas que
pertencia ao meu irmão. O silêncio da noite adormecia meus passos e a música do
rádio abafava meus ouvidos. Sentia uma gostosa sensação de liberdade, não por
causa da minha calça desbotada e sim pela ausência de compromissos naquela
semana específica. Tinha concluído o científico e ainda não havia decidido o
que iria estudar. Estava servindo o Tiro de Guerra, apesar da falta completa de
um perfil físico de soldado.
Virei a esquina e entrei numa rua de terra que passava ao lado de um
barranco nos fundos de uma fábrica de peças de carros. Naquele ponto, quase não
havia iluminação, era um trecho pequeno. Resolvi entrar ali para recuperar o
tempo perdido. Senti um súbito pressentimento e ergui a cabeça.
– Tem cigarro?
Era a senha. Os três se
aproximaram como gatos. Quando me dei conta, um deles já estava com o revólver
encostado na minha cara.
– Sobe o barranco!
Vamos, pra cima do barranco e calado que é um assalto.
Nem sei como cheguei lá. A
escuridão no alto do morro era maior, mesmo assim eles diziam para eu manter os
olhos baixos e passar o dinheiro. Justamente o dinheiro que eu não tinha! Sem
querer levantei o olhar em direção àquele que parecia ser o líder. Mal
vislumbrei seu rosto coberto por uma meia fina quando veio o primeiro soco,
indolor tal o medo que me entorpecia.
– Cadê o dinheiro, seu merda? Tá gozando da minha cara, soldadinho da
porra? – nova porrada.
– Mata ele, mata
ele! – gritavam os
outros dois.
O motivo da raiva do ladrão era a caderneta do açougue que ele puxou do
bolso da minha camisa. Senti o gosto de sangue, mas nada de dor. Minha
respiração ofegante parecia atiçar cada vez mais a adrenalina dos outros dois.
Também com as cabeças cobertas, eles não paravam de gritar mata, mata! Percebi
que eram menores e isso aumentou ainda mais o meu medo.
– O que eu faço
com você, me diz? – ele perguntava,
me segurando pela gola da camisa sem dar atenção aos comparsas – O que você acha que eu devo fazer com um porra dum milico sem dinheiro?
– Eu estou nas
mãos de vocês, não tenho como decidir... – falei instintivamente, sem pensar no que dizia.
– Além de duro,
prepotente. Responde só o que eu tô perguntando, filósofo. O que eu faço com um
cara sem dinheiro? Que valor tem pra mim um milico sem porra nenhuma a não ser
uma caderneta do açougue? Tá querendo pendurar o assalto na conta? Tenho cara
de quem faz assalto fiado?
– Não, eu não
tenho valor nenhum pra você e você vai me matar, mas...
– Mas o quê?
– Vamo matá ele
logo! – gritou um dos moleques assassinos.
– Silêncio, porra!
Deixa eu ouvir o que o milico tem pra dizer. Quem decide se mata ou não mata
sou eu. Calados os dois!
Percebi que o melhor era também ignorar os pivetes e me concentrar no
chefe.
– Peço desculpas
por não ter dinheiro, se tivesse já teria dado... mas se você me matar, vai deixar
um corpo pra polícia investigar... se você me deixar ir eu não vou falar nada,
não sou dedo duro, não gosto de polícia... não sou milico, só estou no Tiro de
Guerra porque sou obrigado...
– Tá, e o que eu
ganho com isso?
– O rádio, o
relógio e a minha roupa. Tá, eu sei que é pouco, mas é só o que eu tenho, se tivesse
mais eu dava, sem problema.
– Um radinho de
pilha de merda, um pataco de merda, uma camisa, uma calça desbotada e um
chinelo de dedo. Que tesouro! Sua vida vale só isso?
– No momento
sim...
Ele ficou quieto, matutando. Os
outros dois, agitados, esfregavam as facas na minha barriga. Pensei em Deus,
pensei no Gabriel, seu enviado que um dia me salvou do Zé Rubens...
– Tira a calça!
Estremeci.
– Senta ali
naquela pedra. Tira a camisa e a calça. Vamos fazer uma troca. Sua calça velha pela
minha novinha em folha. Sua camisa ordinária pela minha, última moda. Vamo lá,
senta aí e vai tirando a roupa. Rápido que eu não posso gastar a noite toda com
você, tenho de ganhar a vida. Agora, presta atenção: reza pra sua calça sem vergonha
servir em mim, porque senão tu morre!
Sentei na pedra, tirei a camisa e a calça. Ele passou o revólver para um
dos moleques para poder se vestir. Mesmo com a cabeça baixa pude ver que ele
era muito maior e mais forte do que eu. A chance de minha calça servir nele era
mínima.
Ele olhou para mim assim que colocou a camisa sem abotoar os botões do
peito para cima. Ficou justíssima e parece que ele gostou porque realçou seus
bíceps e o tórax. Ordenou que eu colocasse as roupas dele enquanto ele vestia
minha calça.
Nem sei que cor era a camisa dele, a calça era cor de rosa e estava
imunda. Minha sorte é que a minha era tipo “boca de sino” e ficava larga em
mim. Passou pelas coxas dele, o que me deixou mais aliviado, mas ainda com
medo.
– Tá vendo como eu
só tive prejuízo? Te dei uma beca novinha, última moda em troca dessa porcaria
de calça velha que mal cabe em mim. Tu tem sorte de eu estar de bom humor
hoje...
Respirei mais aliviado e ansioso para ele tirar o revólver da mão do
moleque.
– Vamo matá ele
agora!
– É isso aí, pra
nós não sobrou nada... Vamo apagá esse cara logo!
– Calado aí os
dois. Quem decide isso sou eu.
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