quarta-feira, 19 de outubro de 2022

CAPÍTULO 17 - ORQUÍDEA RASGADA

 

Capítulo 17 - Orquídea Rasgada

  

Thomaz havia decidido não ir ao trabalho naquela terça-feira, 18 de junho de 2013. Acordou mais tarde e passou a manhã trocando e-mails e navegando nas redes sociais e no Twitter. Não estava muito seguro quanto ao seu grau de envolvimento nas manifestações cujos organizadores prometiam ser pacíficas. Sua situação pessoal não era nada confortável. Estava endividado, com o aluguel e a mensalidade da faculdade atrasados e ainda corria o risco de perder o emprego. É lógico que, numa situação dessas, era quase impossível ser indiferente aos protestos; contudo, não tinha a índole do anarquista, muito menos a intenção de praticar vandalismo. Sabia, no entanto, que seu envolvimento com o grupo estava crescendo a cada dia, a ponto de não ter certeza se conseguiria esquivar-se do efeito manada, caso a coisa descambasse para o quebra-quebra.

 

O toque de mensagem do WhatsApp tira Thomaz do banheiro, com a escova na mão e a boca cheia de pasta de dente. # Cê tá onde?# Em casa, tô de saída. # Vem pra rua, cara!#. Ele termina de escovar os dentes, pega a mochila e o casaco de moletom.  Antes de sair, confere pelo celular a foto da concentração que se inicia na Praça da Sé.

 

O ônibus, como sempre, está cheio, mas ele consegue um lugar junto à janela. Já passa das quatro da tarde e o trânsito começa a se complicar. A tensão aumenta quando ele se aproxima da Praça João Mendes, as ruas de acesso já todas tomadas. Ele desce antes do ponto final. Caminha com dificuldade pelo meio do povo, ouvindo os amigos pelo fone de ouvido e de olho na tela do celular. Este já é o sexto protesto do Movimento Passe Livre que luta para impedir o aumento da passagem de ônibus de R$ 3,00 para R$ 3,20, um movimento que começou em São Paulo e se espalhou pelo País. Um bolo humano compacto toma conta de toda a praça e força as escadarias da catedral. Thomaz nunca viu uma concentração humana tão grande nas ruas. Sente uma espécie de orgulho de estar no meio dela, de fazer parte de uma geração que resolveu se fazer ouvir e tentar mudar tudo o que está aí. Perto das dezoito horas vem a informação de que já são mais de doze mil pessoas no protesto, por enquanto pacífico. #Bora, vai começar a marcha, o bicho vai pegar! #A massa de gente se desloca rumo à prefeitura. No viaduto do Chá a tensão atinge o ápice.


– “Quebrar, quebrar, é melhor pra se manifestar!” #Bota a máscara, véio, tá na hora! #.

 

Thomaz cobre o rosto com o capuz do moletom, coloca a máscara e se desloca no meio da multidão à procura dos black blocs, a “Tropa de Choque anarquista” do movimento. A confusão começa quando um grupo de onze policiais é perseguido por manifestantes ao se aproximar da Praça do Patriarca. No meio do tumulto, um major leva uma pedrada na cabeça e o comando desloca dois grupos de força tática para salvar os policiais. Um dos grupos estava dentro do prédio da prefeitura para tentar impedir a invasão. Começa o ataque ao Edifício Matarazzo, sede do governo municipal. Com pedaços de pau, pedras, tudo que é possível segurar e provocar estragos e aos gritos de “Sem moralismo” eles quebram vidraças e picham a fachada do edifício. Thomaz é puxado por um mascarado enquanto descarregava um spray na parede do prédio.


– Vamos entrar! Vamos entrar!

– Como? Tá tudo trancado por dentro!

– A gente derruba, mano!

 

Eles forçam de tudo quanto é jeito a entrada do prédio, mas não conseguem invadi-lo. Por conta dos black blocs, o vandalismo começa a dominar a manifestação que seria pacífica. Não perdoam nada do que veem pela frente, principalmente agências bancárias, lojas de fast food e outros símbolos capitalistas. Incendeiam um furgão de uma rede de TV, parado no meio da multidão, juntamente com uma cabine da Polícia Militar, a cerca de 150 metros da sede da Secretaria de Segurança Pública. Thomaz olha para as chamas enquanto ouve a sirene dos bombeiros tentando se aproximar do local.


– Meu Deus, cara, onde isso vai parar?

– Cala a boca e segue em frente, mano!

 

Centenas de manifestantes tentam conter os depredadores, para que a manifestação continue pacífica, mas a ausência da Polícia Militar facilita a ação de vandalismo. Uma garota segurando uma bandeira do Brasil se coloca na frente de Thomaz, tentando impedi-lo de quebrar as vidraças de uma agência bancária.

 

– Violência não, por favor, violência não! É isso o que a polícia mais quer...

 

Ele vacila, mas ela é empurrada para o lado por um dos mascarados e eles seguem em frente. Logo em seguida começam os saques em lojas de roupas, eletrodomésticos e farmácias das Ruas Direita e São Bento. Só às vinte e uma horas chega a Tropa de Choque. Thomaz percebe que a maioria dos saqueadores é formada por moradores de rua e dependentes químicos. Os saques prosseguem em volta da Praça do Patriarca e na Rua Barão de Itapetininga e nenhum policial aparece. Lojas, agências bancárias e lanchonetes são invadidas. Um grupo derruba o portão de ferro de uma loja do McDonald´s, na Rua Barão de Itapetininga, diante dos olhos do segurança que apenas assiste à invasão. A multidão quebra objetos e foge carregando alimentos. Companhias de telefonia e de cosméticos têm suas lojas invadidas e depredadas.

 

Quando a Tropa de Choque aparece e entra no perímetro das ruas do centro velho, a onda de ataques é contida, deixando um cenário de destruição. Lixeiras jogadas pelo chão, placas de trânsito quebradas, fachadas pichadas e portões arrombados. A polícia consegue recuperar fornos de micro-ondas, televisões de plasma, jogos de talheres e até mesmo um fogão de quatro bocas. Depois da depredação, o grupo segue tremulando as bandeiras queimadas de São Paulo em direção às escadarias do Teatro Municipal. Num outro ponto, dezoito policiais militares fugiram em direção à Praça da Sé, sob chuva de pedras arremessadas pelos black blocs que tentavam invadir o Othon Palace Hotel, ocupado por um grupo de sem-teto. Thomaz acompanha o grupo quando vê um morador cair e ser chutado no chão. Indignado, ele entra no meio para salvar o homem, ao mesmo tempo que é cercado por outros sem-teto que tentam defender o companheiro.

 

– Bora, larga isso aí, meu irmão. Vamos pro teatro, vamos pro teatro!


Vanessa ainda não acredita que, após tantos anos, está de volta ao Teatro Municipal para uma noite de gala, com direito à ópera Rake´s Progress, de Stravinsky, graças a Murilo, um empresário viúvo que ela conheceu há dois meses e que tem se mostrado disposto a começar um relacionamento com uma mulher descasada e mãe de uma jovem de dezenove anos. Ela, no entanto, ainda não está segura se é isso mesmo o que deseja. Enquanto a certeza não chega, ela se dá o direito de desfrutar com ele os prazeres de uma vida social há muito perdidos. A primeira parte da ópera ocorre sem problemas. Porém, durante o intervalo, a segurança do teatro orienta o público a ficar longe das janelas, pois estão sendo atacadas por manifestantes. Vanessa sente um calafrio ao ouvir o som abafado e ainda distante.

– Você de gravata, vem pra passeata!

 

Antes do reinício do espetáculo, o maestro sobe ao palco e avisa que, se for necessário, um cordão de segurança será montado para que o público deixe o prédio pela lateral, ao final da apresentação. Os vândalos tentam invadir o teatro. A Tropa de Choque chega e eles se contentam em pichar as paredes e os vitrais da fachada. Não há necessidade de segurança extra porque os manifestantes se dispersaram e a saída do público ocorre sem incidentes.

 

– Meu Deus, por que tanto violência? – Vanessa pergunta ao ver a fachada pichada. “3,20 não! Fogo na burguesia! ”

– Eu também já fui jovem – responde Murilo – compreendo a manifestação, só não concordo com o vandalismo.

– Selvagens, isso é o que eles são!

– Acho que não. O povo já está cansado de pagar impostos e não ter nenhum serviço público que preste.

– Tudo isso por causa de vinte centavos?

– Vinte centavos a mais quantas vezes ao dia, quantas vezes no mês? É pesado para quem ganha pouco…

– Eu também passei por muita dificuldade, criei uma filha sem ajuda de marido, mas nunca quebrei nada por causa disso.

– Cada qual sabe como lidar com suas dificuldades financeiras, querida. Eu nunca as tive, mas, quem sou eu para julgá-los?

 

Os episódios de vandalismo começaram por volta das 19 horas, mas os homens do Comando de Policiamento de Choque só entraram em ação às 22 horas. O secretário de Segurança Pública disse que muitos manifestantes foram presos por furtos e danos e que foi sua ideia proibir o uso de balas de borracha nas manifestações. Ele deu a ordem no domingo à noite e informou seu subcomandante. Essa ordem e a que vedou o cerceamento do itinerário dos manifestantes despertou reações na corporação. Um dos oficiais chegou a afirmar que “ruim com balas de borracha, pior sem elas”, e comparou a situação com a do Rio de Janeiro dois dias antes, quando quatro pessoas foram feridas à bala durante a repressão aos atos de vandalismo no centro da cidade.

 

Quando a situação se acalma, Murilo leva Vanessa para casa. No caminho, pouco se falam. Ele sabe o quanto ela está chocada. Conhece a sua história, sabe que apesar da vida modesta que leva, já foi representante da tal “burguesia” ameaçada de ser queimada na pichação do Teatro Municipal. Ele só não consegue entender como a família não a acolheu depois que o marido desapareceu, o tipo de coisa que ele jamais faria com uma filha. Talvez ela não tenha desejado voltar, não por orgulho, quem sabe por mágoa. Uma mágoa que parece ainda estar incrustrada nela e associada ao abandono daquele que a fez largar uma vida de luxo e conforto para depois ser abandonada covardemente. Desde que ficou viúvo ele nunca se interessou tanto por uma mulher, mas sabe que conquistá-la não será nada fácil porque, apesar de tudo, ela ainda ama aquele homem que desapareceu quando ela mais precisava dele.


Nadia sai de casa logo após as 17 horas. Desce a Rua Antonio Carlos em direção à Augusta, carregando uma folha de papel com uma pintura em aquarela. Resolveu colocar uma moldura e afixar o desenho na parede do seu quarto. Desde que começou a pintar, a ansiedade diminuiu e a disposição para a vida aumentou. Encontra sua amiga Catarina em meio a um grupo de manifestantes que sobem em direção à Paulista. Catarina faz sinal para que ela se aproxime.

– E aí, Nadia, está indo pra manifestação?

– Não, eu vou colocar moldura no meu desenho, faz tempo que eu pintei e fico sempre adiando…

– É mesmo? Deixa eu ver. Nossa, que orquídea linda! Não sabia que você pintava tão bem.

– Nem eu, comecei de bobeira, só pra dar uma acalmada, eu ando muito ansiosa, meio deprê.

– Por causa do seu pai? Você ainda continua tentando encontrá-lo?

– Não, outras paradas. Quanto ao meu pai, eu nunca vou desistir de encontrá-lo.

– Mas já faz tanto tempo…

– Não importa, eu sei que a gente ainda vai se encontrar.

– Olha só, acho que você não vai conseguir colocar essa moldura hoje porque está tudo fechado lá pra baixo. Aproveita e vem com a gente pra passeata.


Nadia quis voltar e deixar o desenho em casa, mas Catarina acabou convencendo-a a ficar porque depois seria difícil as duas se encontrarem.


Milhares de pessoas se encontram na Paulista, vindas da região central. Carregam bandeiras, faixas e cartazes com protestos contra o aumento da tarifa, contra a corrupção e a classe política em geral. Ao contrário do centro, o clima é pacífico. Nadia segue ao lado de Catarina, tomando todo o cuidado para não amassar ou deixar cair o desenho de sua orquídea. Ficam quase toda a noite concentradas na Paulista, onde a presença do povo é mais espontânea do que no centro e sem a presença dos black blocs.


Perto das 22 horas ela pensa em voltar para casa, mas Catarina pede para ela ficar um pouco mais e aproveitar aquele momento de democracia plena que só acontece com o povo na rua. Tudo corre bem até que um grupo de anarquistas mascarados chega e começa a causar tumulto e depredações. Qualquer pessoa que carregue a bandeira do Brasil ou tenha a cara pintada é abordada por eles. Aos gritos de “Bandeira da Nação, homenagem à escravidão”, eles arrancam as bandeiras de quem as carrega. Um deles tenta tomar a de Catarina e ela se esquiva.


– Por que você tem orgulho de morar aqui? Por que você gosta do Brasil? – pergunta o mascarado.

– Por que você se esconde atrás de uma máscara? Por que tem prazer em destruir?

– Eu odeio classe média, odeio coxinha metida a besta!

– Por que vocês não vão embora? Vocês não ajudam em nada!


O mascarado insiste em roubar a bandeira, mas ela resiste. Ele faz um movimento como se fosse bater nela. Nadia entra no meio dos dois.

– Deixa ela em paz, cara! Vaza, ninguém precisa de vocês aqui!


Outros mascarados cercam as duas. Catarina usa o pau da bandeira para se defender, o mascarado agarra o braço de Nadia e ela reage. Ele apara o golpe com o braço esquerdo e com o direito tenta puxar Nadia e acaba rasgando o papel com a orquídea. Furiosa, ela acerta um tapa no rosto dele. Quando ele vai revidar, é seguro e empurrado por outro mascarado, tropeça no meio-fio e cai. Levanta-se furioso, mas é puxado por outros mascarados que partem em correria para atacar as fachadas de bancos e lojas.


Nadia se abaixa para procurar o outro pedaço do desenho que foi arrancado das suas mãos. De nada adianta, ele já está destruído mesmo. Desolada, procura um canto livre na calçada e fica ali sentada, sendo consolada pela amiga. O mascarado continua parado, em pé, olhando para as duas.

– O que você está fazendo aqui? – pergunta Catarina – Vai embora com seus amigos vândalos!

– Eu só quero saber se a sua amiga está bem.


A multidão continua caminhando em direção à Consolação e, em resposta aos black blocs, os participantes do Movimento Passe Livre começam a gritar “Sem violência” e se dispersam para evitar o confronto. Por volta das 23 horas chega a Tropa de Choque que vinha do centro pela Augusta e atira bombas de gás na manifestação que já estava começando a se dispersar. Moradores reclamam que o gás lacrimogêneo está entrando nas suas casas. Uma bomba de gás acaba sendo disparada contra um apartamento por causa de uma criança que, da janela, filmava o conflito. No meio da confusão, Nadia acaba se perdendo de Catarina, mas o mascarado a ajuda quando vê que ela está passando mal por causa do gás.


À meia-noite, um pequeno grupo depreda e bota fogo num painel da Coca-Cola, na Praça dos Ciclistas, próximo à esquina da Paulista com a Consolação. “Vamos colorir o Brasil”, era o slogan do painel, uma campanha publicitária da Copa do Mundo. Os vândalos prosseguem pela Rua da Consolação, gritando palavras de ordem contra a Fifa, até serem dispersados pela polícia. Quando tudo se acalma, Nadia decide voltar para casa e só então repara que o rapaz mascarado continua ao seu lado, já sem a máscara.

– E aí, você está bem?

– Mais ou menos, ainda um pouco tonta. Quanta confusão, né?

– Qual o seu nome?

– Nadia.

– O meu é Thomaz. Parece que você perdeu o seu desenho.

– Deixa pra lá, o importante é que ninguém se machucou. É você o mascarado que me ajudou quando o cara tentou me atacar?

– É…

– Não acredito, você é black bloc? Como pode?

– Mais ou menos, quer dizer, já nem sei mais o que eu sou. Entrei nessa sem muita convicção, só queria protestar, não esperava tanta violência. E a sua amiga onde está?


– Nem sei, depois a gente se encontra. Por que você não foi junto com aqueles vândalos?– Não estou mais a fim. Acho que nunca estive. Os caras pressionam a gente o tempo todo. Pra falar a verdade, eu estava puto mesmo é com o preço da condução, de repente esse negócio cresceu de um jeito que parece que ninguém mais tem controle. Você é do Passe Livre?

– Não, não sou de movimento nenhum. Política não é minha praia. Caí aqui de paraquedas, saí pra colocar moldura no meu desenho e encontrei a minha amiga, ela me convenceu a vir. Até que eu gostei. O povo está revoltado com muita coisa, parece que a ficha caiu, o Brasil não é o paraíso que estão querendo vender pra nós.

– Eu estava na Praça da Sé. A coisa ficou feia lá no centro, teve muita depredação. Acabei vindo pra cá junto com esses black blocs.

–Você é anarquista?

– Não, também não me ligo em política. Nunca tinha participado de nada assim, não imaginava que os caras iam detonar daquele jeito.

– Obrigada por você ter me ajudado.

– Foi nada, era a minha obrigação.

–Você não é igual a eles, não devia estar no meio deles. Que hora é agora?

– Mais de meia-noite.

– Nossa, tá na hora de eu ir embora…

– Eu levo você.

– Não precisa, eu moro aqui perto.

– Sem crise, eu faço questão.


Caminham pela Paulista vazia, apenas manifestantes voltando para casa. Na Augusta eles encontram um grupo de rapazes carregando bandeiras e cartazes. Thomaz é reconhecido por um deles. Os dois param e se juntam ao grupo. Ficam conversando sobre a manifestação, tomando cerveja, fumando e contando piadas. Nadia observa Thomaz, agora mais descontraído, sem aquele aparato todo de black bloc. Ele não parece ser um cara revoltado; é alegre e engraçado. Perguntam se ela é namorada dele e ele ri, tentando disfarçar o efeito provocado por aquele par de lindos olhos verdes. Os caras falam que vão descer a Augusta até o centro e ele diz que não vai dar porque tem de levar a “namorada” em casa.

– Não precisa, – diz Nadia – nem estou com vontade de ir pra casa agora.


Eles descem a rua cantando e tremulando as bandeiras. Escutam um som de música ao vivo e isso chama a atenção de Nadia.

– É um pagode, vamos lá!

– Você gosta de pagode?

– Adoro!

– Você não tem cara de quem gosta de samba.

– Por quê? Por causa dos meus olhos verdes e do cabelo louro?  Bobagem! Vamos lá, vai!


O som vem de um barzinho com mesas na calçada onde um grupo toca pagode enquanto outras pessoas comem, bebem e batucam nas mesas. Os dois chegam como se já fizessem parte da turma.


O que é isso, meu amor venha me dizer. Isso é fundo de quintal, é pagode pra valer!

A madrugada avança e os dois continuam cantando, dançando e bebendo. A cidade agora está calma, nenhum sinal do fim de tarde e noite agitados. Eles dançam juntos, separados e com outras pessoas.


Do outro lado da rua um morador de rua aparece e fica observando, meio sem jeito. Nadia já bebeu muito mais do que está acostumada e isso faz bem para ela, tira a ansiedade. Ela brinca e conversa com todo mundo até avistar o morador de rua encostado num poste e batucando na sua canequinha de alumínio. Faz sinal para ele atravessar a rua e se juntar a eles. O mendigo aponta para as próprias roupas, para o sapato furado e faz sinal de negativo. Para espanto de todos, ela atravessa a rua, abraça o mendigo e começa a dançar com ele.


E deixa a vida me levar (vida leva eu). Tô feliz e agradeço por tudo que Deus me deu.


Thomaz atravessa a rua e se junta aos dois. Outras pessoas também participam da roda de samba puxada pelo mendigo. A alegria deles segura o efeito do álcool e faz desaparecer o cansaço. A festa vai até perto das cinco da manhã. Aos poucos vão se dispersando, subindo ou descendo a Augusta. O morador de rua olha bem para Nadia e, com os olhos úmidos, diz: Obrigado, filha! Coloca um pedaço de papel todo amassado na mão dela e sai em silêncio. Ela abre o papel, lê. Em seguida, mostra a Thomaz.

 

 São Paulo é o mundo, não apenas uma cidade.

 São Paulo é cosmopolita. É Nova Iorque, Tóquio, Istambul,

 Londres, Lisboa, Stalingrado...

 São Paulo é um corpo, suas avenidas são artérias;

 suas ruas, veias; seus rios são lágrimas, suor, sangue poluído.


– Que coisa mais linda! – desabafa Nadia, emocionada.

– Será que foi ele que escreveu?

– Acho que sim, olha a letra, toda trêmula.

– Quer ir atrás dele?

– Não sei, estou cansada. Depois que a música acabou é que eu percebi o quanto estou cansada.


Eles vão a pé até o apartamento de Thomaz, na Santa Cecília. Ele abre a porta e, assim que cruzam o batente, o álcool sobe de vez à cabeça deles. Completamente bêbados, tomam banho juntos na esperança de diminuir a embriaguez. Ela coloca uma camisa dele e vão até a cozinha onde comem um pedaço de bolo. Saem de lá cambaleando até o quarto e desabam na cama. Acordam no outro dia, abraçados, um olhando para o rosto do outro.


– Meu Deus, que dor de cabeça, que ressaca!

– Nossa, Thomaz, eu dormi aqui? Minha mãe vai me matar!

– Liga pra ela.


Nadia pega o celular e vê várias mensagens da mãe perguntando onde ela está e quando virá para casa.


– Meu Deus, pisei na bola com dona Vanessa! Nossa, já é quase duas da tarde! Ai, minha cabeça parece que vai explodir!

– Acho que a gente precisa comer, eu vou fazer um mexido…

– O quê? Não me diga que você também come mexido?

– É lógico, tem coisa melhor e mais rápida? Arroz já tem, feijão também. É só esquentar o arroz, jogar dois ou três ovos, mexer, misturar o feijão e pronto!

– Tem tomate?

– Acho que sim. – ele vasculha a geladeira – Dois sobreviventes!

– Então deixa que eu pico o tomate e jogo por cima depois que você colocar o feijão.

– Aproveita e faz o suco também.

– De pozinho?

– Lógico, aqui só tem coisa fina, menina!


Os dois almoçam na pequena mesa no centro da sala. Tentam lembrar as coisas da véspera.


– Noite boa, hein?

– É, acho que eu nunca me diverti tanto, você é maluca, sabia?

– Não, eu só estava feliz.

– O que deu em você pra ir dançar com aquele mendigo? Não que eu tenha alguma coisa contra, mas foi esquisito…

– Não tem nada de esquisito. Me deu vontade. Ele estava olhando com atenção, com tanta vontade de participar da nossa festa. Apesar da distância, parece que eu consegui enxergar dentro dos olhos dele. Não sei se você reparou, mas ele tinha os olhos verdes, tão verdes, acho que mais do que os meus. A pele curtida, os cabelos sujos, sei lá, as roupas escuras, acho que de plástico preto, tudo isso realçava ainda mais os olhos verdes dele. Não sei se por que eu já estava chapadona, acho que não, não foi por causa da bebida que eu fui até ele. Meu desejo era deixar ele tão feliz quanto eu. Não pensei muito, foi impulso mesmo. Agora, o mais legal é que ele não se afastou nem se sentiu mal quando eu me aproximei. Não, ele embarcou comigo como se já nos conhecêssemos, como se não houvesse nenhuma diferença entre nós. Quando eu abracei ele e começamos a dançar, eu não senti nenhum cheiro ruim vindo dele, era como se ele fosse um de nós e não um morador de rua e acho que ele também sentiu isso e durante todo o tempo que ficamos dançando ele se sentiu novamente parte da sociedade. Pena que a gente deixou ele ir embora!

– O que você queria mais?

– Sei lá, ele não era uma pessoa qualquer. Você viu o que ele escreveu? Olha só, está aqui. São versos muito fortes, não é qualquer um que escreve isso, o cara é um poeta! Se eu pudesse ver ele de novo…


Passaram a tarde toda e o princípio da noite juntos. Fumaram narguilé, uns baseados, ouviram música, trocaram carícias, beijaram-se, amaram-se, sorriram, choraram. Nadia acabara de sair de uma depressão, volta e meia tinha recaídas. Pintar foi a forma que encontrou para combater a ansiedade e a ausência do pai. Quando se despediu deThomaz no portão do edifício da Rua Antonio Carlos, ela sentiu a perda da sua orquídea rasgada. Junto com o pedaço do desenho que resistira à manifestação, estava o papel amassado com os versos escritos com letras tremidas e aquilo, para ela, representava um tesouro. Só então percebeu que no verso do papel havia outro texto.


 São Paulo é drama, comédia, aventura e mistério.

 São Paulo é encontro, despedida e partida.

 São Paulo é vida, morte, esperança, desespero e conforto.

 São Paulo é tudo, é minha cidade, meu desalento,

 Meu aconchego, meu útero...




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