quinta-feira, 13 de outubro de 2022

CAPÍTULO 16 - DESERÇÃO

 

Capítulo 16 - Deserção

 

Rodrigo foi um bom marido e um bom pai no pouco tempo em que esteve conosco. Quando ele perdeu o emprego no escritório de arquitetura imaginou que eu desistiria do casamento e voltaria para a casa dos meus pais. Isso mostra que ele me conhecia tão pouco apesar de me amar perdidamente. Eu não o culpo por isso, qualquer um no lugar dele pensaria o mesmo. O ponto fora da curva era eu e não ele.


O que para a maioria das pessoas era um desastre – abandonar uma vida de conforto e luxo para viver num apartamento pequeno com um marido desempregado e tendo que dar aulas em escola pública para manter a casa – não era nenhum drama para mim que fui criada em meio à riqueza sem acreditar que apenas isso bastava para ser feliz. Sempre fui e ainda sou assim. Naquele momento o que mais importava era estar com o homem que eu amava. Por isso, quando ele me perguntou se amor e uma cabana bastavam, não hesitei e nem usei de demagogia para confirmar e dizer que comeríamos pão com salame rindo. Era a mais pura verdade, mas não suficiente para afastar dele o receio de me fazer infeliz.


Ele estava assustado com o desemprego, mas eu sabia que seria passageiro, era só questão de tempo e de saber esperar. Sempre confiei no talento dele e não deixava ele aceitar qualquer emprego só por minha causa. Eu estava bem, ao contrário do que ele imaginava. Só não conseguia convencê-lo disso e ele, fatalmente, acabou aceitando um emprego aquém do que merecia.


Os dois primeiros anos de casados não foram tão dramáticos. Sabia que ele não estava satisfeito em me ver saindo cedo para dar aula numa escola que ele dizia ser de periferia. Afirmação que contradizia as origens dele; explicável apenas porque era eu, a princesinha imaginária, que ele deveria proteger. Bobagem pura aceita por ele como verdade absoluta. Ele estava trabalhando como arquiteto numa empresa pequena que não propiciava nenhuma chance de crescimento. Sua especialidade era urbanismo, soluções inovadoras para problemas causados pelo crescimento desordenado das grandes cidades. Naquele trabalho ele não tinha nenhuma chance de dar vazão ao seu talento e criatividade.


Eu estava disposta a tudo, até a deixar o Brasil, não tínhamos filhos ainda, minha família era desprezo puro, nada me prendia aqui. Faltava a ele coragem e confiança na sua capacidade, mas não era só isso. Rodrigo tinha uma espécie de lado obscuro da alma, uma intransponível barreira interior. Não sou psicóloga, longe disso, mas conhecia muito bem meu homem até o ponto em que ele se permitia conhecer.

 

A situação econômica ainda continuava incerta. Com a saída do Collor e da sua parentalha da Casa da Dinda, assumiu o vice, Itamar Franco, um mineiro que, como todo mineiro, trabalhava em silêncio, mas o País não tinha tempo para esperar o que sairia daquela cabeça sempre adornada com um topete esvoaçante. Nunca fui muito de falar de política, sempre considerei que não devemos esperar dos políticos e dos governos as soluções para os nossos problemas. Nós mesmos é quem devemos conduzir nossas vidas. Estou falando isso porque o desastre do governo Collor deixou milhares de brasileiros com suas economias confiscadas, entre eles Rodrigo que via cada vez mais distante o dinheiro ganho na fase da sua vida em que ele mais produziu projetos de qualidade. Era com esse dinheiro que ele sonhava dar um futuro para a família.

 

O desastre da inflação ainda continuava sendo o flagelo dos brasileiros. Seu insaciável dragão devorava o pouco que se ganhava. Até que o mineirinho do topete esvoaçante mostrou que de onde menos se espera é que podem surgir as soluções insolúveis que atormentam uma nação. Deu carta branca a seu ministro da Fazenda, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso a botar em ação o Plano Real, o único, após dezenas de tentativas frustradas a realmente controlar a inflação e tirar definitivamente esse fantasma das nossas vidas. Ele criou uma nova moeda, o Real, que hoje anda meio debilitada, mas que teve a sua força e garantiu a ele dois mandatos consecutivos como presidente até passar a faixa para o sapo barbudo que aproveitou o quanto pôde a herança bendita que recebera para reinar absoluto como presidente dos pobres e oprimidos e levar o País ao caos que estamos vivendo hoje com madame Dilma, sua cria política.

 

Mas chega de política, o que interessa é falar de Rodrigo. Nossa filha nasceu quase na virada de 1994. Nadia foi seu grande presente e a razão de ele voltar a confiar em si e na nossa reviravolta depois de tantos percalços. Ela resgatou o homem que conheci. Ele mudou tanto, seus lindos olhos verdes voltaram a brilhar e ele voltou a ser carinhoso comigo. O carinho por Nadia era tanto que extrapolava aquele corpinho e sobrava para mim também. Ele virou uma criança junto com ela, chegava do trabalho já procurando por ela. Fez eu abrir mão de algumas aulas para não colocar a filha numa creche. Contratou uma babá para ficar com a filha no período em que eu dava aula. Só não conseguiu me convencer a largar o emprego.

 

Apesar das dificuldades financeiras, tudo ia bem. Até Nadia completar quatro anos. A partir daí ele começou a mudar e eu não consigo ainda hoje entender a causa daquela mudança repentina. Arrisco a dizer que Nadia, à medida que crescia, tornava-se mais amada e aumentava por dois a sua responsabilidade em manter duas princesinhas. Nós sempre fomos muito diferentes. O que para mim era motivo de superação, para ele tinha o sentido contrário, em vez de aumentar a sua garra e a vontade de lutar, empurrava-o para baixo. Começou a beber escondido, imaginando que eu não sabia, e a sair com frequência sem dizer para onde ia, principalmente à noite.


Não demorou muito para eu ter uma conversa muita séria com ele. E, como é da natureza dos homens ao se sentirem acuados, disse que eu estava encostando-o na parede e fazendo cobranças como se ele fosse o único culpado por não conseguir dar a mim e a Nadia a vida que merecíamos. Drama puro, e se havia uma coisa que eu não suportava era quando ele começava a fazer drama, a se colocar de vítima, coisa que ele trazia de berço. Já que ele tocara no assunto, falei tudo que precisava falar, talvez tenha exagerado, não sei. A verdade é que tive de falar justamente o que ele relutava em ouvir. Estava na hora de ele parar de justificar seus erros e assumir que estava acomodado num trabalho que não o levaria a lugar algum. Precisava criar coragem e reconhecer que era um dos melhores arquitetos do Brasil, sair da zona de conforto e procurar um emprego à altura da sua capacidade. Tinha de voltar a fazer contato com pessoas influentes que conheciam o trabalho dele e poderiam cavar uma oportunidade.


Tudo o que falei, na esperança de levantar sua autoestima acabou fazendo o efeito contrário. Ele se fechou em copas e procurou ainda mais, na bebida, a fuga para as cobranças que ele achava que eu estava fazendo quando só estava pensando no bem dele e da nossa família.

 

Uma coisa devo reconhecer: ele nunca deixou que Nadia percebesse qualquer sinal de desavenças entre nós. Até o último momento sempre a tratou com o mesmo carinho, fazendo as lições de casa junto com ela, brincando e levando-a ao cinema e aos parques e, principalmente, ouvindo música com ela, abraçadinhos na cama dela até ela adormecer. Depois disso, costumava sair sem dizer para onde e a voltar embriagado. Eu não poderia aguentar mais aquilo, mesmo amando-o tanto. Dei um ultimato para que ele parasse com aquilo e abandonasse a bebida, procurasse os Alcoólicos Anônimos se preciso fosse. Só não contava com o maldito do crack!

 

Rodrigo saiu de casa, sem nada levar, numa noite de maio de 2000, e nunca mais voltou. O desespero que tomou conta de mim foi indescritível, procurei em tudo quanto é hospital, delegacia, necrotérios e nada! Meu pai, ao invés de me ajudar, me atirou na cara que aquilo aconteceu por causa da minha teimosia em não dar ouvidos a ele e insistir num casamento sem futuro algum. Minha mãe, como sempre, manteve a sua costumeira falta de opinião diante das opiniões de meu pai. Fiquei só, com Nadia em desespero pela ausência do pai. Tocar a vida em frente exigiu de mim o máximo de superação. Acho que Deus foi muito benevolente comigo ao exagerar na dose de superação que ele, caprichosamente, aplicou em meu DNA.

 

Nadia cresceu e se tornou uma mulher, com sua razoável sequela emocional causada pelo sumiço repentino do pai que ela adorava. Disso eu tenho consciência. Fiz o que pude sozinha, sem auxílio nenhum da minha família, para dar a ela o carinho e a melhor educação que estava ao meu alcance. Devo ter cometido falhas como toda mãe comete por excesso de amor e preocupação. Porém, não contemplo motivo nenhum para me sentir irrealizada. Ela é uma menina adorável, com os mesmos olhos verdes e sensibilidade do pai e, felizmente, mais determinada do que ele. Tão determinada que não tem jeito de fazê-la abandonar a ideia de encontrá-lo. Isso é amor verdadeiro, sem mágoas, justamente porque acredito que na cabeça dela ele não a abandonou, foi vítima de algum acidente ou fatalidade causadora do seu desaparecimento. A única certeza que ela tem é que vai encontrá-lo, custe o que custar.




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