sexta-feira, 30 de setembro de 2022

CAPÍTULO 15 - O COMANDANTE

 


Capítulo 15 - O comandante

 

O trânsito era intenso durante a madrugada na Rua Peixoto Gomide, entre a Frei Caneca e a Augusta, não só na rua como também nas calçadas por onde eu andava em meio a um cenário deprimente. Eu sabia que ali era o ponto de encontro de jovens e adolescentes que não podem entrar nas casas noturnas para maiores de idade e também a “feira livre” de drogas. Entre os carros parados no trânsito, circulavam traficantes com as mãos carregadas de pinos de cocaína, maconha, comprimidos de ecstasy, cartelas coloridas de LSD e gotas do anestésico GHB, também usado como estimulante sexual. Era junho de 2013, na época eu não sabia o nome dessas coisas todas, sabia apenas as consequências que cada uma delas acarretava nesses jovens bem de vida, mas ruins de cabeça.

Sentados na calçada, adolescentes cheiravam cocaína, bebiam catuaba e vodca. A iluminação fraca facilitava o trabalho de negociação dos traficantes trajando casacos e moletons para guardar as drogas nos bolsos. Um garoto se levanta e chama um grupo que passa na outra calçada.

– Chega aí, mano! A festa aqui é melhor que a balada mil vezes. A gente pode fumar, beber e ser feliz, de boa. Rola muita mina e a galera arrasta mesmo!

Ao lado deles, dois garotos desmaiados, enquanto outro se retorcia na calçada com os lábios sangrando de tanto mordê-los.

– Me compra um pó, preciso ficar mais acordado, por favor!

Tudo aquilo eu via sem parar minha caminhada. Andava a esmo como sempre e com uma pressa totalmente descabida porque não tinha compromisso nenhum, muito menos um lugar para descansar meu corpo alquebrado.

À minha frente um grupo de gays que frequentavam boates da Frei Caneca fazia o aquecimento antes da balada com pó, ecstasy e bebida nos barzinhos da região ou na própria calçada da Peixoto Gomide. Eles conhecem as ruas e preferem andar sempre em grupos porque temem ataques homofóbicos de skinheads. E foi justamente por esse caminho que resolvi passar. Minha presença, como sempre, não era bem recebida pelos traficantes.

– Vaza, vaza, cai fora daqui senão a gente põe fogo em você!

Apressei o passo e quando cheguei na esquina da Frei Caneca fui surpreendido por um grupo de carecas vindos pela mesma calçada. Na frente vinha o mais forte deles, agitado e dando socos no ar. Quando percebi já não dava tempo de voltar ou sair da calçada. Dei de cara com o troglodita e nem tive tempo de esboçar qualquer reação. Fui socado e atirado no cimento duro da calçada.

– Sai pra lá, coisa suja! Tu é gay, por acaso? Tô a fim de arregaçar viadinhos hoje, sai do meu caminho!

Começou o festival de chutes e pontapés sem que eu conseguisse me proteger dos golpes. Quando achei que eles fossem acabar comigo, ouvi o som de uma viatura se aproximando. Os porras dos carecas covardes fugiram sem muita pressa e ainda praguejando como se fossem os donos da rua, os donos da cidade. Tentei levantar e caí novamente.

Fui amparado por um dos policiais que prestou o atendimento convencional de primeiros socorros. Eles queriam me levar para um pronto socorro ou albergue e eu me recusei. Já passei muita merda nesses lugares, preferia me recuperar sozinho, da forma que eu já estava acostumado. Eles também não insistiram muito nem fizeram questão de perguntar quem tinha me agredido. A viatura continuou a ronda sem dar atenção ao movimento dos jovens e ao comércio enrustido na rua.

Tentei continuar seguindo meu caminho pelas calçadas congestionadas de garotos bebendo misturas alcoólicas em garrafas pet de refrigerantes. Estava meio zonzo devido à queda e às pancadas. Passei a mão pelo meu rosto e vi que estava manchado de sangue. Devia estar também em outras partes do corpo. Completamente sem forças, resolvi deitar na calçada, esperando não ser incomodado por ninguém. Com o rosto colado ao chão pude ver três rapazes se aproximando. Meu instinto me fez recuar mesmo que me arrastando pela maldita calçada.

– Tranquilo aí, tio, não vamos fazer nenhuma maldade com o senhor. Só queremos ajudar.

– Ajudar por quê? Ninguém ajuda ninguém.

– Fica frio, a gente é do bem. Vimos quando aqueles carecas da porra agrediram o senhor. Como o senhor está se sentindo?

– A merda de sempre, só que agora com muita dor. Nas costas, nas pernas, não tô nem conseguindo andar.

– Calma que a gente vai tirar o senhor daqui.

– Nem adianta que eu não vou pra hospital nem pra albergue...

– Não esquenta, tamo de boa, o senhor vai pra um lugar manero, vai gostar de lá.

– Delegacia, nem vem!

– Já falei, tamo de boa.

Eles me colocaram no banco de trás de uma Kombi bem detonada. Não dava para ver, mas acho que seguiram em direção ao centro. Adormeci sem ser incomodado pelos solavancos e curvas fechadas nas ruas estreitas. Chegamos num casarão antigo parecendo abandonado. Eles me retiraram do carro e me carregaram até um dos quartos, no andar de cima da casa. Tiraram minhas roupas e me colocaram debaixo de um maldito chuveiro. Quando me dei conta do que estava acontecendo, recebi uma forte ducha de água fria.

– O que é isso, estão querendo me matar?

– Nada disso, tio. É só um banho, acho que há muito tempo o senhor não sabe o que é isso.

– E por que razão eu tenho que tomar essa porra desse banho agora?

– Fica quieto aí senão o senhor se machuca mais.

Mesmo com muito protesto me deram um banho completo, com sabão, shampoo e essas merdas todas. Depois me enxugaram, botaram um pijama, sei lá, e me deitaram numa das quatro camas espremidas no espaço pequeno do quarto. Numa delas havia crianças brincando e um casal trocando carícias, se esfregando na frente das crianças como se estivessem sozinhos em lua de mel. Depois de um bom tempo percebi o movimento de jovens aparentemente dedicados a tarefas distintas. Dois deles, carregando máquinas fotográficas saíram apressados dizendo que iam cobrir as manifestações.

Em volta de uma grande mesa rapazes e moças em frenética agitação digitavam naqueles aparelhos tipo computadores pequenos e celulares, outros falavam em aparelhos fixos, naquilo que parecia ser uma sala de redação. Foi isso que me disseram depois porque na hora eu não entendia merda nenhuma daquilo tudo que estava acontecendo. Antes disso, eu resolvi sair da cama, aí apareceu uma mulher não tão jovem quanto as outras e com cara de enfermeira nazista.

– Não, não, não... pode ficar aí mesmo, o senhor precisa descansar e eu tenho de fazer uns curativos no seu rosto e nos ferimentos espalhados pelo seu corpo. 

– Mas eu já tô bom, preciso ir embora...

– Pra onde? Tem pra onde ir, por acaso?

– Pra lugar nenhum... tô acostumado a não ir pra lugar nenhum...

– Não está gostando daqui?

– Que merda de lugar é esse?

– Chihhhh.... Olha a educação, tem criança no quarto!

Aí eu tive vontade de perguntar para ela por que justamente eu é que tinha de ter educação se tinha um casal quase trepando na frente das crianças, mas resolvi não dizer nada, já estava cansado de levar porrada, queria era vazar logo dali. Pelo jeito ia demorar porque a enfermeirona nazi estava disposta a cuidar mesmo de mim. Ela tinha jeito para a coisa, estava conseguindo aliviar as minhas dores. Apesar da aparente dureza tinha mãos delicadas.

O cheiro de água oxigenada, mercúrio cromo e outras porcarias que ela passava pelo meu corpo foi me dando uma moleza gostosa. Só não conseguia entender por que estavam me tratando daquela forma, como gente! Perguntei a ela que lugar era aquele e ela me disse que era um tal de coletivo, uma porra assim. Enquanto fazia os curativos ela ia explicando que merda era aquela e eu tentando entender a razão de toda aquela gente amontoada naquele casarão como se fosse a casa de todo mundo. Ela disse que lá era realmente a casa de todo mundo. Qualquer um podia se instalar ali, o lugar era de todo mundo e de ninguém em particular. Ela falava, falava, e eu tentava entender como aquela birosca podia funcionar se ninguém era dono de nada porque, pelo que ela falou, tudo ali era livre, ninguém era dono de nada, nem das crianças! Quer dizer, aquelas crianças iam crescer sem saber quem era o pai ou mãe, todos faziam esse papel.

Para mim que já estava há muito tempo morando nas ruas, era difícil compreender tudo aquilo que estava rolando na porra daquele casarão. Olhei para o lado e vi que o casal estava realmente trepando na frente das crianças e ninguém parecia se incomodar com isso. Me deu até uma tontura, será que o mundo já está assim e eu não tinha me dado conta?

A essas alturas, eu estava só com o calção do pijama, a mulherona nazi esfregando meu corpo e aqueles dois gemendo na cama do lado e eu me sentindo mais deslocado do que um gambá numa perfumaria. Quis levantar porque percebi que aquilo tudo estava começando a dar um tesão danado em mim, já há tanto tempo sem encostar numa mulher. Ela me segurou e disse para eu não me reprimir. Que porra significava aquilo, não se reprimir? Entendi logo. Ela abaixou o meu calção e começou a me masturbar.

– Ei, o que é isso?

– Fica quieto, faz parte do tratamento.

– Que tratamento? Eu não estou machucado aí!

– Você parece que não entendeu nossa filosofia de liberdade. Liberte seu corpo e libertará sua mente. Eu não lhe expliquei que isso aqui é um coletivo? Vivemos a experiência de negação de tudo quanto é posse, material e espiritual, o ser humano livre de todas as amarras da sociedade, obedecendo apenas aos instintos da natureza.

Ela continuou explicando todo o funcionamento daquela comunidade sem parar de me masturbar, sem perder o ritmo. Eu já não conseguia me concentrar nas explicações dela, pouco me importava se aquela cama devia ou não ter dono, o que me interessava realmente eram os movimentos da mão dela.

Como eu estava precisando daquilo! Há quanto tempo eu não sabia mais o que era sentir prazer? Minha mente confusa e atribulada começava a ter uns bons minutos de paz e eu me lembrei de Vanessa. Ah, Vanessa... A enfermeira fazia aquilo mecanicamente. Apesar disso, despertou em mim o carinho esquecido e adormecido. Olhei para ela como se estivesse olhando para Vanessa e senti amor por ela, amor fugaz que duraria alguns segundos ou minutos, no máximo.

– Esses seus olhos verdes são de uma beleza indescritível...

Aí, ela tirou a roupa e subiu em cima de mim. Cavalgou um bom tempo em cima de mim e eu só pensando em Vanessa. Minha querida, por que eu perdi você? Por que fugi de você e de nossa criança? As lágrimas rolaram dos meus olhos simultaneamente ao meu sêmen dentro daquela mulher desconhecida. Eu estava gozando. Há milênios eu não gozava dentro de uma mulher porque desde que perdi Vanessa jamais estivera com outra mulher.

– Por que você está chorando? – ela perguntou enquanto saía de cima de mim, limpava minha genitália toda, colocava as suas roupas, meu calção, e continuava a fazer os curativos na minha perna.

– Lembranças...

– Todo mundo tem um passado. Aqui, não nos preocupamos com isso, cada indivíduo é um mundo à parte. Logo você vai se acostumar com isso.

– Mas eu não tenho intenção de ficar aqui.

– Por quê, se você não tem onde ficar?

– Eu tenho sim, tenho a cidade toda, posso ficar onde quiser...

E ser tratado da forma como foi tratado hoje?

– Isso também é uma forma de liberdade. O homem está condenado a ser livre, não é assim?

– Ah, um mendigo existencialista! Você ainda não me respondeu por que chorou, que lembranças fizeram você chorar...

Neste momento entrou no quarto um homem idoso, com trajes de adolescente contrastando com sua barba branca e seu rabo de cavalo preso com um prendedor em forma de um brasão que eu não consegui identificar. Ele olhou para mim e perguntou quem eu era. Ela explicou como fui achado e como os três rapazes me entregaram aos cuidados dela. Ele perguntou meu nome e eu disse que já nem me lembrava porque nome é material totalmente desnecessário para um morador de rua.

Fiquei sabendo que ele era o “Comandante”. Tipo o mandachuva de lá. Disse que eu era livre para ficar ou sair, mas que não saísse antes de falar com ele. Aquilo soou como uma ordem. Eu já não sabia se era manhã, tarde ou noite. Sabia apenas que precisava dormir um pouco. Adormeci pensando em Vanessa e na minha filha.

Fiquei uns dois ou três dias naquele lugar sem que o Comandante prestasse atenção em mim em meio a tantas atividades, todas elas ligadas às manifestações contra o aumento da passagem dos ônibus. Aquilo tudo para mim não dizia nada, nem de ônibus eu andava e tinha muita gente ali que estava interessada apenas em usufruir das coisas sem dono e das sacanagens que rolavam naquela “experiência comunitária do século 21”.

Fui embora sem me despedir da minha enfermeira. Apesar de toda aquela liberdade eu não me sentia livre naquele casarão. Estava acostumado demais à vida de sem-teto e ali tinha teto demais para mim. Guardo uma boa recordação da enfermeira, não exatamente por ela ter, em teoria, me estuprado. Uma única vez, é bom que se diga! A boa recordação que guardo dela deve-se ao fato de ela ter me tratado como gente e reconhecido que por baixo disso tudo que eu me tornei existia uma alma boa, bastante perdida, mas uma alma boa.

Quanto ao Comandante, também não nos despedimos. Algo nele me assustava ou incomodava, não sei qual a palavra adequada. Ele me parecia familiar, tipo conhecido de vidas passadas, essas lorotas todas que servem como justificativas baseadas em espiritismo quando não entendemos a nossa ligação com pessoas desconhecidas. Toda vez que ele passava por mim, eu estremecia como se dele emanasse uma coisa que eu não sabia exatamente dizer o que era, mas que mexia com a minha cabeça e com o meu corpo. Ainda por cima, ele também tinha os olhos verdes.



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