quarta-feira, 6 de abril de 2022

CAPÍTULO 6 - O DEDO DURO - PARTE 1

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Capítulo 6 - Dedo duro - Parte 1


Eu nunca tinha visto tanto balão no céu quanto naquele domingo. A Vila Esperança já estava toda enfeitada há quase dois meses.  Quando o Carlos Alberto recebeu aquela deixadinha do Pelé e emendou um canhão de pé direito, já estava todo mundo na rua comemorando o tricampeonato do Brasil lá no México. Graças a Deus meu pai tinha conseguido comprar uma televisão para ver a Copa do Mundo de 1970, assim como tinha comprado o rádio para ouvir o Brasil ser campeão em 1958. Meu pai era pé quente nesse negócio de comprar coisas na Copa do Mundo.

 

Pelo rádio ele ouviu o Brasil ser campeão em 1958 e bicampeão em 1962. Não deu a mesma sorte em 1966, acho que por causa disso ele resolveu comprar a televisão. Era tanto balão e tanto rojão pipocando que os cachorros da vila estavam todos escondidos e só foram aparecer tarde da noite, depois que tudo se acalmou. Gente pobre, gente rica, todo mundo estava feliz. 


A ditadura militar ainda não tinha acabado, mas agora tinha um presidente que gostava de futebol, o Garrastazu Médici, um gaúcho torcedor do Grêmio. Ele gostava tanto de futebol que quis até escalar a seleção do João Saldanha, o técnico que classificou o Brasil com o time chamado de As feras do Saldanha! Dizem que o Saldanha era comunista, não sei se é verdade, acho que não. Se fosse comunista estaria escondido ou preso. 


O presidente gostava do Dario, o Dadá Maravilha, centroavante do Atlético Mineiro, mas o João Saldanha preferia o Tostão, do Cruzeiro, que nem centroavante era. Por isso, deixava o Dario no banco. O Médici disse no rádio que o Saldanha tinha de escalar o Dario. No dia seguinte o Saldanha falou que o presidente podia escalar o ministério, mas quem escalava a seleção era ele. 


Aí, ele foi mandado embora e o Zagallo ficou no lugar dele e foi tricampeão com o time do Saldanha. Dizem que isso foi só uma desculpa, o presidente queria mesmo era tirar o técnico porque ele era comunista. Não sei, também não estava preocupado com isso, queria mais é ver o Brasil campeão.

 

Na segunda-feira meu pai me levou ao centro de São Paulo. Tinha prometido comprar uma calça comprida pra mim se o Brasil fosse campeão. Estava na hora, eu já tinha comido uma mulher, não tinha por que continuar usando calça curta! É lógico que eu não ia falar isso pra ele; mas era o que eu sentia. Minha mãe meio que já sabia disso, não que eu tinha comido uma mulher e sim que eu não gostava de calça curta. 


Ela ajustava na máquina de costura as calças que eu ganhava dos filhos da minha madrinha. Logo na primeira vez que fui a São Paulo foi amor à primeira vista. Era tudo tão diferente de Vila Esperança. Tanto movimento, tantas luzes, tanta vida! Fiquei encantado com a quantidade de gente nas ruas, com tantos carros indo e vindo. 


E o bonde, então! Eu ficava grudado na janela olhando tudo em volta. E os prédios! Cada um mais alto que o outro. Eu andava olhando pra cima e os prédios pareciam não ter mais fim.  “Um dia ainda vou morar aqui”, pensei, mas sem muita convicção porque eu ainda era meio criança e não tinha ideia de nada na vida que fosse além de Vila Esperança. Agora era diferente, eu ia fazer dezesseis anos e já conhecia um pouco mais a vida dos adultos. Andando ao lado do meu pai, e de calça comprida, me sentia um deles.

 

Pegamos um ônibus que fazia um longo percurso até o centro. Muita coisa eu tinha pra ver daquela janelinha. O ônibus fez uma curva e entrou numa avenida larga com pistas nas duas mãos e aí o trânsito ficou mais complicado. Vi pessoas correndo por uma rua que dava acesso à avenida e achei aquilo estranho. Meu pai disse que aquela não era uma avenida e sim a rua da Consolação. Só não explicou por que as pessoas estavam correndo. 


O ônibus parou de repente, os carros da frente também. Ouvi um barulho esquisito e outro pequeno grupo de pessoas correndo ao lado do muro do cemitério. Vi então que no muro do cemitério estava escrito com tinta vermelha a seguinte frase: ABAIXO A DITADURA! Dali a pouco surgiram alguns caminhões do exército na direção do grupo que tinha acabado de aparecer ao lado do muro do cemitério. Eles pararam e passaram a correr de volta no sentido contrário que era o da subida da Consolação. 


Mais à frente apareceram soldados a cavalo. Aquelas pessoas, na maioria jovens que meu pai disse se chamarem subversivos, atravessaram a rua na direção do nosso ônibus, esperando alcançar a outra pista da Consolação, justamente onde estávamos, e dali se dispersarem em direção à avenida Paulista. 


Dentro do ônibus estava todo mundo em pé e colado nas janelas para ver aquilo que logo ia se transformar numa praça de guerra. Da calçada que eles pretendiam alcançar apareceram mais e mais soldados com enormes cassetetes. Os subversivos não tinham mais pra onde correr e ficaram presos na Consolação misturados aos carros e aos ônibus, virando presa fácil. 


Como não tinham para onde ir, tentaram reagir, mas era uma luta desigual. Um grupo de soldados protegidos por enormes escudos tomou a frente e entrou no corpo a corpo com os jovens. Muitos foram espancados e arrastados pelo asfalto. Aquilo me deixou assustado mesmo. Foi aí que eu vi um jovem de cabelos compridos e jaqueta de couro gritando: “ABAIXO A REPRESSÃO!” Ele tentou atacar um policial com um pedaço de pau e foi golpeado por trás por um soldado da cavalaria. Vi ele cair quase embaixo do nosso ônibus e, em seguida ser puxado por dois policiais. 


Agarrado à força, foi jogado contra a lateral do ônibus logo abaixo da minha janela. Foi aí que eu tomei um susto que até hoje não sai da minha cabeça. Pude ver o rosto dele durante alguns segundos que pareceram uma eternidade. Era o Gabriel, tenho certeza, meu amigo comunista, o enviado de Deus que me libertara da opressão do Zé Rubens e agora era preso e espancado porque gritava “ABAIXO A REPRESSÃO!” 


Desesperado, pedi para o motorista abrir a porta e ele se negou. Comecei a esmurrar a porta e fui seguro pelo meu pai que não conseguia entender a minha reação. Dominado por ele, vi meu anjo Gabriel ser arrastado e colocado dentro de um camburão com outros tantos jovens subversivos. No meio da pancadaria, uma coisa chamou a minha atenção. Quando os jovens corriam para o meio da rua, eles passavam pelos carros gritando coisas como: “ACORDA, DIGA NÃO À ALIENAÇÃO!”; “BURGUESIA ALIENADA, NÃO MUDA NADA!”; “ABAIXO A DITADURA, O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO!”. 


A maioria das pessoas ficava calada, apenas observando a ação da polícia; outros, porém, reagiam e apoiavam os militares. Antes de ser pego, Gabriel discutiu com um deles que havia gritado pra polícia baixar o porrete nesses comunistas vagabundos. 


Ouvi quando Gabriel se aproximou do carro do cara e gritou: “Alcaguete, dedo duro, burguês safado!” Depois foi pego e arrastado até a lataria do ônibus. Tive a impressão que ele me viu, mas não deve ter me reconhecido depois de tanto tempo. Quando tudo se acalmou e o ônibus chegou no ponto final meu pai me levou até um bar. Sentamos numa mesa perto da janela.




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