quinta-feira, 21 de abril de 2022

CAPÍTULO 6 - DEDO DURO - PARTE 2

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Capítulo 6 - Dedo duro - Parte 2


Quando tudo se acalmou e o ônibus chegou no ponto final meu pai me levou até um bar. Sentamos numa mesa perto da janela.

O que foi aquilo? Qual o motivo daquela reação?

Não sei, não gostei de ver aquele rapaz ser espancado daquela forma.

E o que você queria fazer? Ser preso junto com ele?

Por que fizeram aquilo, pai? Por que o exército estava na rua atacando as pessoas com tanta violência?

Porque eles não são pessoas inocentes, são perigosos, querem acabar com a ordem do país e precisam ser contidos.

O senhor concorda com essa violência?

Não se trata de concordar ou não concordar e sim de não se meter em assunto que não é da nossa conta.

O que quer dizer alcaguete? E dedo duro?

Delator. É a pessoa que entrega outra que fez alguma coisa que ela considera errado.

E subversivo?

É quem faz o que aqueles rapazes estavam fazendo, criar um clima de desordem no país, jogar o povo contra o governo...

Subversivo é o mesmo que comunista?

É tudo da mesma laia.

Você viu o rapaz que eles levaram preso?

Vi, o que é que tem ele?

Eu conheço ele...

Como?! De onde?

Lembra daquele rapaz faminto que apareceu lá na vila e que a mãe deu comida pra ele?

Aquele comunista?

– É, naquela época ele conversou comigo algumas vezes no caminho da escola.

E por que você não me contou isso?

Pra quê?

Ele era comunista, a polícia estava atrás dele!

E você ia dedurar ele?

Ele estava sendo procurado pela polícia, você poderia ter trazido complicação pra todo mundo da vila. E, principalmente pra você e pra nossa família. Tinha que ter me contado.

Mas ele não parecia perigoso. Estava só desempregado e com fome.

Isso é o que você pensa. Ele estava te usando, fazendo a sua cabeça.

Mas eu era criança, só tinha dez anos. Ia precisar de mim pra quê?

Pra plantar um monte de ideia comunista na sua cabeça. Plantar uma semente pra dar fruto agora. Por isso você teve aquela reação. Já pensou se a porta do ônibus estivesse aberta? Onde você acha que estaria agora?

Mas eu sou de menor...

Para com isso menino e vê se toma juízo. Iam mandar você pra um reformatório e eu iria preso no seu lugar. Graças a Deus o motorista não abriu a porta!

Uma coisa aquele rapaz acertou. Ele falou pra mim que quando teve a revolução e o Castello Branco virou presidente pra ficar pouco tempo era mentira, ele ficaria e faria uma ditadura militar. E foi o que aconteceu, não foi?

Olha aqui, eu não quero ouvir você falar mais desse assunto, entendeu? Nada mais, nem comigo nem com ninguém. Esquece isso, você não viu nada, não aconteceu nada. Sua mãe não pode saber nada do que aconteceu hoje. E durante um bom tempo você não sai de casa.

Mas, pai, eu tenho de ir pra escola...

E é só pra lá que você vai; ou melhor, está na hora de você começar a trabalhar. Eu e sua mãe já estamos vendo isso. Você vai trabalhar durante o dia e estudar à noite. Só isso, trabalhar e estudar! E cuidado com as companhias, tá cheio de gente mal-intencionada querendo fazer a cabeça de garotos como você.

 

A conversa com meu pai foi muito boa, mas não fez eu esquecer o Gabriel. Onde ele estaria agora? Ouvi dizer que esse pessoal que é preso sofre tortura. Provavelmente ele vai ser torturado também e não vai querer ser dedo duro. Eu também acho que pior do que subversivo e comunista é ser dedo duro. Jamais vou querer ser chamado de dedo duro.


Voltamos para casa e guardamos segredo. Eu e meu pai tínhamos um segredo. Isso para mim era mais um sinal de que eu estava virando homem mesmo. Na semana seguinte eu estava lendo uma revista na calçada da minha casa quando apareceu um homem desconhecido e perguntou se eu conhecia o Lampião. Perguntei por quê. Ele me disse que era um amigo dele, que fora vizinho dele antes de ele mudar para Vila Esperança. Falou que estava precisando conversar com ele, mas tinha esquecido o nome da rua que ele morava.

 

 O Lampião era um dos amigos de pelada do nosso campão de terra. Era um cara bem despirocado, muito maluco que vivia se metendo em confusão, mas no fundo era boa gente. Conversei um pouco mais com o desconhecido e perguntei algumas coisas sobre o Lampião para me certificar que eles se conheciam mesmo. Como não vi nenhum problema, fui com ele até a casa do Lampião. 


A mãe dele, quase sempre bêbada, ouviu as palmas no portão e veio atender. Disse que o filho tinha saído, mas que não iria demorar. Sentamos na calçada e ficamos conversando até a hora que o Lampião apareceu. Quando ele chegou, o desconhecido se levantou, caminhou até ele e perguntou:


Tá lembrado de mim?

Não. Eu te conheço?

Conhece.

Engraçado, eu não lembro.

Lembra do dinheiro que você tá me devendo?

Não sei do que você tá falando, meu. Nem sei quem você é...

Então eu vou te lembrar!

 

Assim que eles se encontraram, percebi que eu tinha feito besteira, mas nem imaginava o tamanho dela. O desconhecido avançou sobre Lampião com uma faca retirada da manga esquerda da camisa. Lampião recuou, mas não conseguiu evitar o golpe no abdômen. O barulho chamou a atenção dos moradores e da mãe dele que saiu aos berros:


Mataram meu filho! Mataram meu filho! 


Os irmãos do Lampião saíram no encalço do desconhecido, mas ele correu até o local onde deixara a motocicleta e fugiu antes de eles se aproximarem. Eu não sabia o que fazer, o que falar. A mãe, agarrada ao filho, voltou-se contra mim.

 Seu dedo duro, você que trouxe o assassino do meu filho! Dedo duro filho da puta!

 

Frustrados por não alcançarem o desconhecido, os irmãos também se voltaram contra mim e teriam me agredido se mais pessoas, inclusive meu pai, não tivessem chegado naquele momento. Um dos vizinhos apareceu de carro e levou o Lampião até o Pronto Socorro mais próximo, onde foi constatado que havia mais exagero de mãe do que gravidade no ferimento. 


Voltei para casa mudo, amparado por meu pai. O que mais doía era ter sido chamado de dedo duro. A acusação me remetia ao Gabriel, preso em alguma cela por causa de algum dedo duro. Era angustiante sentir-me no mesmo rol dessa figura repugnante. Meu pai, conhecedor do meu caráter percebeu logo meu melancólico sentimento e tentou de todas as maneiras tirar de mim esse estigma que me acompanhou durante longos anos. 





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