quarta-feira, 30 de março de 2022

CAPÍTULO 5 - A PRIMEIRA VEZ - PARTE 2

 

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Capítulo 5 - a primeira vez - Parte 2


– O que você tem?

– Caí da castanheira.

– Machucou?

– Acho que não, mas tá doendo.

– Onde?

– Dói a cabeça.

– Você caiu de cabeça?

– Não, claro que não, mas tá doendo a cabeça.

– Levanta um pouco e anda.

– O que você tá fazendo aqui?

– O mesmo que você.

– Mas você é uma menina!

– E daí, não pode?

– Pode, mas eu nunca vi uma menina fazer essas coisas. Nunca vi uma menina aqui no sítio do seu Tobias.

– Eu já vim aqui um monte de vezes.

– Você não tem medo?

– Medo de quê?

– Do seu Tobias pegar você.

– Ele morde, por acaso?

– Não, mas detesta ver a gente no sítio dele e tem uma espingarda de sal...

– Não acredito, isso é invenção para por medo na gente.

– Qual o seu nome?

– Liane.

– Nossa, nunca ouvi esse nome!

– Era pra ser Eliane, mas o homem errou no cartório. E o seu, qual é?

– Rodrigo.

– Bonito nome. Nossa, seus olhos são tão verdes!

– Ih, tava demorando!

– O quê?

– Deixa pra lá. Vocês estavam brincando de quê?

– Esconde-esconde.

– Ah, mas isso é brincadeira de menina.

– Você tem alguma coisa contra meninas?

– Não, pelo contrário...

– Então vamos brincar!

 

As outras meninas voltam, acompanhadas pelos meninos da vila vizinha e aí eu me junto ao grupo deles. Com a quantidade de crianças das duas vilas já é possível brincar de combate. Formamos dois exércitos, o americano e o alemão. Caí no alemão e Liane no americano. Somos inimigos. Cada exército escolhe sua base em pontos distantes do sítio. Depois, os exércitos formam seus batalhões e se espalham, cada qual seguindo uma trilha. Quando batalhões inimigos se encontram, começa a batalha com direito a tiros de fuzil e metralhadoras, lançamento de granadas e até luta corporal. Os soldados podem ser mortos ou capturados. Prisioneiros podem ser trocados por recompensas.

 

Preparo meu fuzil de madeira e parto com meu batalhão de mais três soldados em uma missão de reconhecimento. Atravessamos o pântano em meio às taboas e aproveitamos para aumentar nossa munição de mamonas. Nosso objetivo é chegar na castanheira e montar uma base militar. O desafio é atravessar o campo aberto e ficar sujeito ao fogo inimigo. Escuto tiros no flanco esquerdo e oriento meus soldados a se dividirem e nos deslocamos rastejando na mata até chegarmos em campo aberto e, dali, corrermos em direção à castanheira. Os tiros cessam e continuamos rastejando até o abacateiro. Ali nos reagrupamos e dou ordem aos soldados para começarem a travessia até a castanheira. 


Meu primeiro soldado é abatido no início da corrida, os outros dois caem prisioneiros. Fico sozinho no abacateiro e começo uma operação de recuo na tentativa de encontrar outro batalhão amigo. Encoberto pela mata, me desloco cautelosamente, o dedo firme no gatilho. Escuto um movimento logo à frente e torço para que também sejam alemães. Aguardo o melhor momento para decidir se me junto a eles ou começo os disparos. Ergo a cabeça acima da moita onde me escondo para divisar o deslocamento de tropas inimigas. Quando menos espero, sinto a pressão do cano do fuzil nas minhas costas.

 

– Quietinho e mãos na cabeça.

 

Caio prisioneiro de um lobo solitário. Melhor dizendo, uma loba. Liane parece radiante em ter-me feito prisioneiro. Pede para eu me agachar e eu acabo deitando na grama. Ela se ajoelha ao meu lado com a arma apontada para minha cabeça. Seus cabelos estão presos por uma Maria Chiquinha. Seu uniforme é uma camiseta, um short apertado e um Conga branco. Deitado e dominado, fixo o olhar no meu inimigo. A camiseta suada no peito deixa transparecer os mamilos juvenis em plena florescência. Aquilo mexe com o prisioneiro de uma forma nada militar. Carregado de hormônios, acuso o golpe. Nossos olhos se cruzam. Ela se aproxima mais, andando de joelhos. Deitado, olho de baixo para cima percorrendo com o olhar fascinado suas coxas bronzeadas do sol da infância.


Meus hormônios se agitam ainda mais. Começo a sentir aquela coisa ainda pouca conhecida na minha idade. Ela agora está muito perto de mim, seus joelhos tocando minha perna. É uma menina, mas dela chega o cheiro de mulher. Um cheiro que eu ainda não conheço, mas completamente distinto do cheiro das minhas três irmãs. A dor de cabeça passou, o efeito do Sangue de Boi também. Todos os sentidos do meu corpo estão ligados. Ela abaixa a cabeça na minha direção, os olhos bem dilatados.


– Agora você é meu prisioneiro. Peguei um lindo alemão de olhos verdes...

 

Ouço um grito, seguido de uma correria. “Seu Tobias! Corre, corre, rápido!” Os dois exércitos batem em retirada. Liane olha por cima da moita e, de repente, se joga sobre mim.


– É o seu Tobias, tá passando aqui do lado, fica quieto!

– Está com a espingarda?

– Tá. Vamos ficar abaixados que ele não vê a gente.

 

Deita-se inteiramente sobre mim, o rosto encostado no meu. Sinto seu hálito, minha boca toca seu rosto e meu pinto fica tão duro que parece que vai sair para fora do calção. Ele está no meio das pernas dela, não é possível que ela não sinta. Ah, meu Deus, está ficando cada vez mais quente aqui e eu estou ouvindo passos.


– Cadê vocês, seus moleques? – seu Tobias aparece segurando sua famosa espingarda de sal – Se tiver algum por aqui é melhor sair correndo porque se eu te pegar você vai se arrepender! Cadê vocês, seus moleques da porra?

– Não se mexe, – Liane sussurra no meu ouvido – fica quieto que ele vai embora.

 

Ela fala com o rosto tão colado no meu, seus peitos tocando meu pescoço e eu sentindo meu pinto molhado e cada vez mais duro. Nunca passei por isso, acho que não vou aguentar. Quando eu era mais pequeno, descobri que esfregar meu pinto era gostoso. Quando eu descobri isso, não parava mais de fazer escondido no quintal ou dentro de casa, debaixo do lençol. Esfregava, esfregava até dar aquela sensação gostosa e ele ficar mole de novo. Uma vez eu estava fazendo isso debaixo do lençol, aí, quando deu aquela sensação gostosa, eu me molhei todo. Foi a primeira vez que eu joguei porra para fora e eu não sabia o que era aquilo, fiquei com medo da minha mãe me bater porque eu molhei a cama. Demorei a dormir. Quando acordei, parecia mágica, estava tudo seco! Era tudo novidade para mim! 


Agora, essa novidade é maior e mais perigosa. Estou grudado numa mulher, morrendo de vontade de fazer uma coisa que eu ainda nem sei direito o que é. Ela deve ter percebido, não é possível. A porra desse seu Tobias rondando a gente. Por que esse velho não vai embora logo? Sem perceber, falo alto e ela tapa a minha boca com a dela para eu não fazer barulho. Minha respiração quase para, nunca beijei uma mulher, nem sabia o gosto que tem. Todo menino mente quando diz que já comeu uma mulher. Eu sei disso porque eu minto também. Seu Tobias parece estar indo embora e ela ainda não tirou os lábios dos meus. Agora estou sentindo a língua dela. Ah, meu Deus, como é bom! Ela olha nos meus olhos e percebe que eu estou gostando. Aí ela começa a lamber meu rosto, meu pescoço, passa os dentes na minha carne, parece que vai me morder. Está tirando a camiseta. Eu sinto os peitos dela em cima de mim.  Ela começa a puxar meu calção, está pegando no meu pinto. Aí, eu não aguento mais, abro os botões do short dela, puxo o short. Ela lambe meu peito, segurando meu pinto. Levanta um pouco o corpo e eu tiro a calcinha dela. Ela pega minha mão e põe na coisa dela, fica esfregando minha mão na coisa dela. Parece que está tudo molhado, que nem meu pinto. Aí ela pega meu pinto e põe na coisa dela. Eu estou ficando louco, nunca fiz isso! Ela é uma menina, mas não tem como voltar atrás. Seu Tobias já foi embora e nós estamos deitados na grama. Aí eu sinto o calor da coisa dela na cabeça do meu pinto e aí é como se eu já tivesse feito aquilo, é como se meu pinto já tivesse feito aquilo e eu não precisasse dizer para ele como fazer. Ele quer entrar, mas não está fácil e isso me deixa mais cheio de vontade ainda e aí ela solta um gritinho e eu não paro, mesmo achando que deveria parar. Aí ela me agarra mais, me vira para o lado e sobe em cima de mim e eu sinto meu pinto entrando e ela gemendo baixinho e eu gostando cada vez mais, cada vez, cada vez mais. Depois, sinto como se fosse o disparo de um canhão e uma coisa gostosa se espalhando pelo meu corpo inteiro. Ela me agarra mais e mais, gemendo, gemendo... de repente tudo para e nós estamos tão agarrados que devemos parecer um só. Meu pinto se recolhendo como um soldado voltando da guerra.


– O que foi isso?

– É o amor...

– Nossa, você tá bem? – pergunto, assustado, ao ver meu pinto cheio de porra e de sangue – Eu machuquei você?

– Não, é que foi a primeira vez.

– Você era virgem? Eu tirei sua virgindade, não podia ter feito isso!

– E você não era? Eu acho que era sim, então eu também tirei a sua. Tá tudo certo.

– Mas nós somos de menor...

– Não tem perigo, eu não estou no dia.

– Que dia? De que que você tá falando? Eu não estou entendendo nada...

– O dia fértil, seu bobo. Vai dizer que você não sabe!

– Não, não sei. Eu não sei nada disso, como é que você sabe?

– Minha mãe me contou tudo. Ela não tem problema de falar essas coisas comigo.

– Quantos anos você tem?

– Dezesseis.

– Fala a verdade vai. Você não parece mais velha que eu.

– Quatorze, qual a diferença?

– Você é uma criança!

– Que nem você. Vai dizer que não gostou?

– Nossa, claro! Mas se o meu pai souber disso, ele me mata!

– Pelo menos você morre feliz.

 

Ela ria, mas eu estava assustadíssimo, achando que tinha feito uma maldade. Ela me acalmou e me garantiu outra vez que não ia acontecer nada, que ela não estava naquele tal de dia fértil. Ela sabia disso porque a mãe dela ensinou ela a contar os dias. Eu não sabia nada daquilo, ninguém falava comigo sobre isso na minha casa. Nem meu pai, que falava tudo para mim.


Aí ela falou que no dia anterior o namorado dela quase fez o mesmo com ela porque ela provocou e na hora “h” ficou com medo e foi embora para casa. Por isso que ela sabia que não ia acontecer nada. Ela sabia porque tinha preparado tudo para perder a virgindade com o namorado, mas achou que ele foi muito bruto com ela. Muito diferente de mim, ela disse, porque foi ela que me comeu. Eu fiquei vermelho quando ela falou isso e aí ela riu e eu pensei: como mulher sabe das coisas mais do que nós! 


Foi gostoso ficar conversando com ela. O problema é que nós nem percebemos que o dia já estava acabando, o sol indo embora, a noite chegando e nós dois no meio do mato e com a espingarda do seu Tobias por perto.  Saímos da forma que entramos, pulando a cerca de arame farpado e correndo o risco de se machucar. Queria levar ela para a casa dela, mas ela não deixou. Quando cheguei em casa já era muito tarde, quase sete horas da noite. Minha mãe, preocupada, por pouco não me bateu. Prometeu que não ia contar para o meu pai que, para minha sorte, tinha ido na venda comprar outro garrafão de Sangue de Boi e ainda não tinha voltado. Ela prometeu não contar para ele se eu prometesse não fazer isso de novo.

    

Nunca mais vi Liane. Procurei por ela todos os dias daquela semana. Fiquei sabendo que ela tinha se mudado pra São Bernardo. Fiquei muito triste mesmo. Queria ter conversado com ela no outro dia, meu primeiro dia depois de ter me tornado homem. Queria ter certeza que não tinha feito nada de errado. Depois, compreendi que de todas as coisas erradas que tinha feito naquele dia, como roubar o Sangue de Boi do meu pai e invadir o sítio do seu Tobias, ter feito amor com Liane tinha sido a coisa mais acertada da minha vida até aquele dia.

 

Fiquei muitos anos sem pensar nela e hoje senti falta dela. Queria saber o que aconteceu com ela, se a vida dela foi ou está sendo melhor que a minha. Mas isso é o tipo da coisa que eu nunca vou saber. A única coisa que sei é que que Liane foi a melhor invasão do sítio do seu Tobias que eu fiz na minha vida.

Continua na próxima quarta-feira

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segunda-feira, 21 de março de 2022

CAPÍTULO 5 - A PRIMEIRA VEZ - PARTE 1

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Capítulo 5 - a primeira vez - Parte 1


O que vou contar agora nunca foi revelado a ninguém. Não me pergunte o motivo porque nem mesmo eu sei. Era maio de 1968. Meu pai dizia que o mundo passava por uma transformação. Com certeza ele tinha ouvido isso no rádio. Eu era uma criança ainda. Naquela época, ter quatorze anos não era o mesmo que hoje. Existia uma certa inocência nos meninos e meninas de quatorze anos.

 

O mundo, como meu pai dizia, passava por uma transformação, alguma coisa que vinha lá da França, um tipo de revolução, mas não do jeito que imaginava meu desconhecido anjo Gabriel. Começou com umas greves de estudantes de universidades e escolas de ensino secundário em Paris, em confrontos dos estudantes com a polícia e acabou em greve geral de estudantes e ocupações de fábricas em toda a França.

 

Eu, para variar, não entendia muito bem essas coisas e quando os professores ou as pessoas mais velhas iam me explicar, eu ficava mais confuso ainda porque me falavam que a greve geral fora desencorajada pelo partido comunista lá da França e que os estudantes acabaram dominados pelo governo, que não era comunista, e acusavam os comunistas de tramarem contra a República.

 

Aí, eu lembrava que o Gabriel, meu amigo comunista, tinha me explicado que comunista gosta de greve e de revolução. Então por que os comunistas da França não queriam as greves? Comunista era diferente de país para país? Uma coisa, pelo menos o Gabriel acertou: a ditadura militar realmente se instalou no Brasil, mas ninguém podia falar sobre isso senão era chamado de comunista.


O presidente Castello Branco tinha falado que ia ficar pouco tempo no governo, mas acabou ficando até o ano passado. No lugar dele entrou outro militar, um tal de Costa e Silva. O coitado do Castello Branco morreu logo depois num acidente de avião. Meu pai ouviu no rádio. Mais que isso eu não sabia porque ninguém falava nada e o Gabriel, que era o que mais gostava de falar, nunca mais apareceu depois de ter me libertado do imperador Zé Rubens.

 

Outras mudanças aconteciam e, dessas, todo mundo falava porque não tinha nada a ver com política. Eu, como ficava escondido lá na Vila Esperança, não tinha como amar os Beatles nem os Rolling Stones, mas ouvia Roberto e Erasmo Carlos no rádio e, quando podia, via o programa da Jovem Guarda na casa do único vizinho que tinha televisão.

 

Meu irmão mais velho comprava uma revista chamada Intervalo que contava tudo sobre a turma da Jovem Guarda. Um dia ele apareceu em casa com uma calça esquisita e disse que era a calça do tremendão Erasmo Carlos. Meu pai não gostou nada daquilo e quase fez ele devolver a calça.

 

Minha vida naquela época se resumia a jogar bola, empinar papagaio, jogar taco, bolinha de gude, brincar de mãe na mula, correr de carrinho de rolimã e patinete, fazer guerra com bosta de vaca, rodar pião, soltar balão, brincar de mocinho e bandido e mais uma infinidade de coisas desconhecidas das crianças de hoje. Em meio a todas essas atividades, existiam aquelas mais selvagens como matar passarinho com estilingue, brincar de Tarzan na mata e, uma das minhas preferidas, invadir o sítio do seu Tobias!

 

Se a expressão existisse naquela época, com certeza diríamos que o sonho de consumo dos meninos da Vila Esperança era invadir o sítio do seu Tobias. Já para o seu Tobias, o pesadelo da sua vida era ter o sítio invadido pelos meninos da Vila Esperança. Aquele sítio tinha tudo o que uma criança mais gostava e o que mais temia: as árvores frutíferas apinhadas de frutas e a espingarda de tiro de sal do seu Tobias!

 

O medo, contudo, era recompensado pelo prazer de desfrutar das delícias proporcionadas naquela Terra das Maravilhas. Vezes sem conta tive a felicidade de pegar mel no tronco da castanheira, debaixo de uma nuvem de abelhas carvoeiras, uma espécie tão pequena que grudava no cabelo da gente. Quem tinha cabelo de pico, ou pixaim, sofria mais. As abelhas grudavam tanto que quando a gente voltava para casa à noite, tinha de lavar a cabeça para tirar as abelhinhas pretas escondidas no couro cabeludo.

 

Tínhamos combinado a invasão para depois do almoço. Quis o destino que, justamente naquele dia, a boia em casa estivesse reforçada com galinha ao molho pardo e vinho Sangue de Boi. A galinha fora morta e preparada pela minha mãe. O vinho, comprado pelo meu pai e reservado apenas para os adultos. Era a regra da casa. Acontece que uma das coisas mais agradáveis para os meninos da vila era quebrar regras. Sem que meu pai visse, coloquei vinho na garrafa de Grapette.

 

Para quem não conhece, Grapette era a marca de um refrigerante americano sabores uva e framboesa que chegou no Brasil em 1948. Foi o primeiro refrigerante sabor uva do país e eu lancei o primeiro Grapette sabor Sangue de Boi. Fiel ao slogan quem bebe Grapette, repete, eu e meus irmãos bebemos e repetimos Sangue de Boi. Depois, partimos para a invasão ao sítio do seu Tobias.

 

Devia ter, por baixo, uns quinze moleques ocupando a parte central do sítio, onde ficava a castanheira. Levamos corda, madeira e outras bugigangas e rapidinho fizemos três balanços presos ao tronco principal da castanheira. Meus irmãos, os mais velhos da turma, se encarregaram de passar as cordas em volta do tronco e de prendê-la nos assentos de madeira.

 

Tudo pronto, começa o festival do balanço. Ganha quem conseguir impulsionar mais alto o assento. Vale tudo, ficar sentado ou em pé no assento, até mesmo fora dele, agarrado à corda, no melhor estilo Tarzan. Impulsionados pelo Sangue de Boi infantil, eu e meus irmãos éramos os mais audazes, os que chegavam mais alto e com maior número de malabarismos.

 

É lógico que tanto malabarismo depois de um almoço reforçado e repetidas doses de Sangue de Boi logo faria estragos. A primeira e única vítima fui eu e devo dizer que cair do galho e enfrentar a ressaca de Sangue de Boi foi demais para mim.

 

A queda não foi o pior. Caí em cima do mato e não quebrei nada. O problema maior foi a dor de cabeça do vinho misturado com açúcar. Achei que estava delirando quando vi meninas no sítio. Eram três. Vieram com meninos da vila vizinha. Estavam brincando de esconde-esconde e uma delas veio se esconder justamente ali onde eu sofria o meu suplício.


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terça-feira, 15 de março de 2022

Capítulo 4 - O homem que nunca sorri - Parte 2

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O homem que nunca sorri - Parte 2


– Pirralho filho da puta!

 

Não imaginava que ele fosse capaz daquilo. No meio da confusão, com as torcidas esperando para ver se o juiz de Osasco ia ter peito para confirmar o pênalti, o homem que nunca sorri me joga do barranco. Passo que nem um torpedo sobre várias cabeças e caio quase na risca da lateral, por cima de um punhado de torcedores da geral. Seu Duca, a nova versão do Zé Rubens, me atirou do poleiro como se eu fosse um pinto depenado. 

 

Caí por cima dos torcedores do meu time, que nada sofreram por causa da minha falta de peso. Graças a Deus não me machuquei, só ficaram as dores. Meu novo ditador ainda me chamou de diabinho dos olhos verdes. Ninguém pode imaginar como estou revoltado. Revoltado e impotente. Meu drama passa completamente despercebido pelos torcedores ansiosos pela cobrança do pênalti. Lembro do Gabriel, o desconhecido enviado por Deus para me livrar do Zé Rubens. Por onde andará meu libertador? Só Deus sabe e não parece disposto a enviá-lo para uma nova missão.

 

Os ânimos se acalmam, o juiz de Osasco consegue segurar os jogadores mais exaltados do Caixotão. Cidão toma posição para a cobrança. O silêncio se espalha por Vila Esperança e pelas vilas mais próximas até explodir no grito de gol dos corintianinhos. Agora é só segurar os minutos restantes e mais os descontos para conquistar a taça imitando ouro.

 

Os caixotenses, no entanto, não aceitam a derrota e a briga começa. Em poucos minutos o palco da festa vira um campo de guerra. As duas torcidas se encontram depois da invasão de campo iniciada atrás das traves onde Cidão converteu o gol da vitória. Fico desesperado ao ver o tamanho da violência. Transformam em armas paus de bandeiras além de outros arrancados da cerca do casal alemão sem filhos e das cercas das casas vizinhas.


O sangue que derramei do rosto de Zé Rubens não é nada comparado com o tanto de sangue surgido na batalha campal. Quero encontrar meu pai e meus irmãos, mas a confusão é tão grande que mal consigo me afastar do lugar onde caí feito um pinto pelado.

 

O confronto aumenta e ocupa as ruas vizinhas. Mães e mulheres surgem do nada, na ânsia de salvar filhos, maridos e até netos da matança que se prenuncia. Consigo me desvencilhar de um grupo de gladiadores, atravesso o campo até a lateral da rua da minha casa onde avisto minha mãe.

 

Agarrada a meus irmãos na tentativa de resgatar meu pai que, sem querer nem perceber, se engalfinhara com alguns torcedores adversários, mas conseguira escapulir com algumas escoriações pelo corpo e um fio de sangue vertendo da testa, logo acima do olho direito. Fico transtornado ao ver meu pacífico pai ferido de guerra. Ao som das sirenes da rádio patrulha os contendores se dispersam por todos os cantos de Vila Esperança.  

 

À noite, em casa, cada um sabe onde a dor lhe dói mais. A minha maior dor não é física. Dói na alma. Leite Glória até quando? Com a longa vivência dos dez anos não consigo entender o que faz um homem atirar uma criança de um barranco como se fosse um entulho, uma coisa sem serventia.

 

Meu pai permanece quieto, ouvindo o rádio. Minha mãe, apreensiva, prepara a janta. Meus irmãos jogam palitinho e comentam o grande acontecimento do dia. Minhas irmãs brincam com suas bonecas de pano e prestam atenção na conversa dos irmãos. Alheio a todos, eu penso em Gabriel, na falta dele. O anjo Gabriel, enviado de Deus. Se ele estivesse lá, teria me defendido do homem que nunca sorri. Gabriel foi substituído pelo seu Duca e sua maldade amplificada na minha mente de criança marcada.

 

Ficamos muito tempo ainda acordados depois da janta, o que não é comum. Reina um silêncio de gelo, nem os cachorros se manifestam. Em meio ao completo silêncio ressoa fundo nos meus ouvidos e na minha alma dois estampidos.

 

– Tiros... – afirma meu pai – e é aqui perto!

 

Saímos à rua sobressaltados, meu pai à frente. Muitos vizinhos já estão lá. Ouvimos alguém dizer que os tiros vieram da casa do seu Duca. Todos se deslocam para lá com passos apressados. Encontramos uma agitação dentro e fora da casa. Meu pai se adianta para descobrir o que aconteceu. É informado que a proprietária da casa, dona Filomena, fora assassinada friamente pelo seu inquilino ao cobrar o aluguel atrasado.

 

O homem que nunca sorri, além de agressor de crianças, agora era um assassino. Antes de a polícia aparecer, praticamente toda vizinhança já estava no local. Quando a polícia chegou foi afastando todo mundo, abrindo espaço para a ambulância. Ninguém arredava pé antes de ver o corpo ser retirado da casa.

 

Seu Duca, meu algoz, fugira, deixando para trás mulher e filhos. Zezé, meu amigo de peladas e filho do homem que nunca sorri, estava num canto, mais branco que papel. Cheguei perto dele e ele parece que nem notou minha presença. Estava calado e soluçando baixinho. Fiquei pensando no que poderia estar passando na cabeça dele. Imaginei-me no lugar dele e estremeci. Se já carregava o fardo de ter nascido no dia que Getúlio Vargas se matou, imagina ter um pai assassino!

 

Meia hora depois começava a retirada de dona Filomena, tarefa nada fácil por causa do peso do seu corpo. Vários homens abriram caminho carregando numa maca improvisada o gigantesco corpo sem vida. Vi quando ele passou por mim dentro de um enorme vestido branco totalmente manchado de vermelho no peito e na barriga. Seria melhor eu não ter visto. De volta para casa no meio da madrugada, fui para a cama e não consegui pregar o olho. Ora era o homem que nunca sorri que me visitava, vomitando impropérios e me ameaçando com a arma do crime ainda fumegante, ora o corpo gigantesco de Dona Filomena em seu vestido branco com uma interminável mancha de sangue.



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Futebol de várzea em São Paulo

 


terça-feira, 8 de março de 2022

Capítulo 4 - O homem que nunca sorri - Parte 1

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O homem que nunca sorri - Parte 1

 

Domingo é o sagrado dia do festival de futebol de várzea de Vila Esperança. Dia de ver o Mão de Onça jogar no gol do nosso time, o Corintinha. Chego cedo para acompanhar todos os preparativos. A festa vai até o pôr do sol. O campo de terra, com arquibancada natural num dos lados e atrás de um dos gols, fica sempre entupido de gente. Todo mundo disputa um lugar, no tapa se preciso for. A arquibancada é um morro que pega toda uma lateral do campo e o espaço atrás de um dos gols. 

 

São os melhores lugares porque dão uma visão mais elevada, ideal para se ver um jogo de futebol. A parte mais elevada do barranco faz fronteira com a chácara de um casal de alemães que, estranhamente, não tem filhos. A outra lateral do campo fica ao nível do chão. 

 

A rua da minha casa termina bem meio do campo. Atrás da outra trave, que também fica ao nível do chão, passa uma rua de terra e do outro lado da rua fica a casa do homem que nunca sorri, pai do Zezé, um dos meninos da minha faixa de idade. Com certeza, ele é o homem mais estranho que já vi.

 

Como cheguei cedo, as traves ainda estão peladas. Um senhor comanda a marcação do campo. Um ajudante aprofunda as marcas e outro joga cal. O tempo está nublado, se chover haverá lama, sinal de muitas disputas, jogadas violentas, substituições e expulsões. Se Deus quiser, não haverá brigas; mas Deus tem de querer mesmo!

 

Na lateral do lado da minha casa estão montando as barracas de churrasquinho, sanduíches, tubaína, Crush, cerveja, caipirinha e até pinga pura. Muitas crianças correm pelo campo atrás de uma bola de capotão com o couro já bastante gasto.

 

Entro na brincadeira até aparecer um homem carregando as redes. Aí eu largo tudo para ver ele colocar aquelas lindas redes azuis nas traves pintadas de branco. Ele termina, verifica se não ficou nenhum cantinho por onde a bola passe e confunda o juiz. Coloca a rede numa trave e vai para a outra. A molecada aproveita para chutar a bola na trave que já está com a rede.

 

O festival funciona assim: cada equipe tem o time A e o B, o A é o mais forte. Os jogos são eliminatórios, quem perde sai, mas nunca joga time A contra time B. No final, vai ter um troféu imitando prata para o campeão do torneio B e outro imitando ouro para o campeão do torneio A. Nosso time B é formado pelos moleques mais velhos e alguns adultos. O A tem mais adultos do que moleques. Meu ídolo é o Mão de Onça, um negro forte e alto com a maior mão que eu já vi num homem.


Dos moleques do time A o melhor é o Cidão, depois tem o Zé Carlos, o Bituca, o Osvaldo, o Bilé e o Neguinho. Eu jogo com todos eles durante a semana e acho que o que tem mais chance de virar profissional é o Cidão, um meia armador com o estilo do Ademir da Guia.       

                                                                 

Já passa das nove quando os primeiros times chegam em caminhões, ônibus e jardineiras. Os jogadores que estão em situação melhor vêm de carro, sob os olhos empolgados das Maria chuteiras. Os dois lados do morro já estão quase lotados e eu escalo o morro da lateral para encontrar um cantinho junto da cerca da chácara dos alemães.

 

O morro é alto e tem pouca inclinação. Quando encontro espaço, tenho de ficar quase todo o tempo de cócoras ou sentado com a perna encolhida para não acertar a cabeça de ninguém. Os primeiros times B entram em campo debaixo de muitos rojões. Todo mundo já sabe que os primeiros jogos são verdadeiras peladas, é só um jeito de ir esquentando até as disputas mais acirradas entre os melhores times A.

 

Entre eles, é claro, o Corintinha, com Mão de Onça e Cidão! Aí o tempo esquenta porque tudo indica que a decisão vai ficar entre Corintinha e Caixotão, da favela do Caixote em Pé, no Jardim Campanário, perto do Zoológico. O Caixotão não é um time clássico como o nosso, mas é muito forte e abusa das faltas, a maioria delas desleais.

 

Quando ele joga sempre tem confusão, principalmente no campo deles onde eles nunca perderam um torneio porque os outros times têm medo de ganhar no jogo e perder na porrada. A última vez que o Corintinha jogou lá, perdeu de 3 a 2, depois de estar vencendo por 2 a 0. Caçaram o Cidão de tudo quanto foi jeito e ele saiu machucado. Mão de Onça, coitado, fez o que pôde para segurar pelo menos o empate e ir para os pênaltis, mas não teve jeito. Terminamos o jogo com nove jogadores. Hoje, se der a final, vai ter cara de revanche. Deus queira que o pau não quebre!

 

Como todo mundo estava prevendo, a decisão vai ser mesmo entre Corintinha e Caixotão e eu estou aqui no meu cantinho, todo espremido, esperando o juiz apitar o começo do jogo. Nunca vi tanta gente! O morro parece um poleiro de galinhas e eu sou um pintinho no meio de tanto galo garnisé.

 

Para não dar confusão, trouxeram um juiz neutro, de Osasco. O primeiro tempo terminou com 1 a 0 para o Caixotão que, para variar, abusou do jogo desleal e eu aqui com um pressentimento de que vai dar merda. A nossa torcida está quase toda concentrada no barranco do lado onde eu estou. No barranco atrás do gol está a maior parte da torcida do Caixotão. Tudo misturado na geral.

 

Acho que fiz besteira, devia ter ficado junto com meu pai e meus irmãos mais velhos, nem sei onde eles estão agora. Para complicar, atrás de mim, em pé e agarrado na cerca do casal alemão está o homem que nunca sorri. Provocações surgem de todos os lados. Lá embaixo já tiveram dois começos de briga no primeiro tempo. Cinco jogadores já foram advertidos com cartão amarelo.


O Corintinha volta muito melhor e pressiona até conseguir o gol de empate aos trinta minutos. Se ficar assim vai para os pênaltis e o Mão de Onça pode brilhar! O clima vai ficando cada vez mais quente e eu com uma vontade danada de sair dali, mas sem saber como. Seu Duca, o homem que nunca sorri, dá mostras de que abusou das caipirinhas e quem paga por isso são minhas costas a cada gol perdido pelo Corintinha. Agarrado na cerca, ele não tem como mexer os braços e seus pés castigam minhas costelas.


Cidão faz um lançamento perfeito para o Neguinho que se livra do zagueiro e, quando vai bater para o gol, é chutado por trás e cai quase dentro da pequena área. O silêncio dura alguns segundos antes de ouvirmos o apito do juiz de Osasco.


Pênalti! Todo o galinheiro do meu lado pula de alegria e minhas costas sofrem o pior ataque do pé do homem que nunca sorri. Os jogadores do Caixotão cercam o juiz, empurrados por sua torcida. Aproveito a confusão para reclamar dos pontapés nas minhas costas.

 

– Pirralho filho da puta!




                                          Continua na próxima quarta-feira

 

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