quinta-feira, 28 de julho de 2022

CAPÍTULO 12 - QUERO A PAZ DE CRIANÇA DORMINDO


Capítulo 12 - Quero a paz de criança dormindo


 

Rodrigo sabe que não pode deixar o homem ali naquele estado, tem de levá-lo para casa, seja onde for. Fuça os bolsos dele para ver se encontra documentos ou algum comprovante de endereço. É surpreendido por uma viatura da polícia e em poucos minutos é encostado na parede, revistado e, por pouco, não recebe os carinhos costumeiros dos policiais. Acharam que ele estava assaltando o Radialista quando só queria ajudá-lo. Depois de tudo explicado eles são encaminhados a um pronto-socorro. O Radialista é levado para um quarto porque o caso é grave, talvez coma alcoólico. Na verdade, não chegava a tanto, o problema maior era a pressão alta.

 

Rodrigo passa noite inteira ao lado da cama do seu Antenor da Silva, o Radialista. Ele já tem a ficha completa do seu Antenor. É viúvo, pai de três filhos que não moram com ele, talvez casados ou simplesmente abandonaram o pai. Ele mora num prédio próximo à Alameda Nothmann, cuja janela fica de frente para o Minhocão. Durante o dia ele mal consegue dormir por causa do barulho dos carros, mas isso não o impede de frequentar o boteco da Frei Caneca ou talvez outros espalhados pelo centro da cidade. Seu Antenor é tipo vampiro ou coruja, criatura da noite. Depois que o paciente recebe alta, Rodrigo faz questão de levá-lo para casa, mesmo ele insistindo que já está bom e que pode se cuidar sozinho. Pegam um táxi e vão direto para o covil do Radialista, no Minhocão.

 

O apartamento é extremamente pequeno e escuro, a janela vive fechada por causa da poluição. Rodrigo escancara as duas venezianas para não sufocarem lá dentro. Acomoda-o na cama e vai preparar alguma coisa para comerem. A cozinha é pequena, mas bem arrumadinha. Enquanto equilibra as panelas no pequeno fogão de duas bocas, ouve as músicas que vêm do quarto do Radialista. Apaga o fogo e vai até lá. Ele fica de queixo caído com o toca-discos e a incrível quantidade de LPs e compactos simples e duplos caprichosamente guardados em pilhas separadas por cantores e épocas. Tudo MPB, com algumas raridades.

 

Rodrigo passa a tarde ouvindo as histórias do seu Antenor e da sua eterna paixão pelo rádio e pela música brasileira. Começou a trabalhar aos dezoito anos na antiga Rádio Mayrink Veiga, uma emissora carioca fundada em 1926 e que foi líder de audiência na década de 1930, reduto de novos talentos e ícones da “Era do Rádio”. Foi lá que estrearam Carmem Miranda e sua irmã Aurora. Ele conta que em 1961 a Rádio Mayrink Veiga participou da chamada Cadeia da Legalidade, uma rede de rádios nacionais organizada por Leonel Brizola para defender a democracia, o que posteriormente serviria como justificativa pelo golpe militar para fechá-la em 1965.

 

O garoto Antenor começou sua carreira em 1937 separando os discos que seriam utilizados nas transmissões diárias. Com o surgimento da Rádio Nacional, também no Rio de Janeiro, a Mayrink Veiga perdeu seu posto. Foi na Rádio Nacional que o jovem Antenor começou a atuar como radialista, graças à sua voz privilegiada. Outra coisa que chama a atenção de Rodrigo é o fato de a Rádio Nacional ter iniciado como empresa privada em 1936 e depois ser estatizada por “ele”, Getúlio Vargas, em 1940, durante o Estado Novo. Getúlio a transformou na rádio oficial do governo brasileiro. Com o avanço da televisão, o rádio foi perdendo a importância que tinha. O Radialista pendurou o microfone em 1978, aos 59 anos. Hoje ele se mantém com o dinheiro de uma pequena aposentadoria. A vitrola e a coleção de discos são herança do seu tempo de locutor. Oficialmente, esse tempo acabou, mas não na cabeça dele.


– Que susto você deu, hein seu Antenor! Tá querendo se matar?

– Você se preocupa à toa, garoto, foi só um mal-estar.

– Causado pelo excesso de bebida. O senhor precisa moderar, já não é mais nenhum garoto.

– Ai, meu Deus, o que eu fui arrumar agora, um enfermeiro de plantão?

– O senhor mora sozinho mesmo?

– Eu e Deus, é o que basta!

– E se o senhor passar mal de novo, quem vai cuidar?

– Já estou com 69 anos... meia nove. Já vivi bastante. Esse mundo não tem mais nenhuma novidade pra mim...

– E seus parentes?

– Parente é pior que dor de dente! Parente é que nem paisagem: quanto mais longe, mais bonito fica! Não preciso de parente nenhum!

– E seus filhos?

– Tudo casado. Cada qual com seus problemas, vão esquentar a cabeça comigo pra quê?

– O senhor não sente solidão?

– Mas quem não sente, meu filho? Quem nessa cidade de doido não sente solidão? A minha eu resolvo com a música. Todos esses discos que você está vendo aí vieram da Mayrink Veiga e da Rádio Nacional. A maioria eu ganhei dos próprios cantores. Tudo autografado, pode ver: Emilinha Borba, Francisco Alves, Marlene, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Dolores Duran, Silvio Caldas, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins... é tanta gente, garoto, que eu não ia conseguir falar o nome de todo mundo. Esses astros e estrelas conviviam comigo todos os dias, como se eles fossem a minha família. Minha vida toda foi voltada para a música. Então, quando eu sinto a solidão rondando, ponho quantos discos precisar na vitrola e passo o dia ouvindo e matando a saudade daquele tempo bom que não volta mais. Acaba com a solidão? Não, mas faz a gente conviver com ela sem sofrimento. Por isso, você deve fazer tudo que pode quando é jovem, tem de viver com intensidade, menino, porque depois, quando a velhice chegar ai daquele que não tiver lembranças boas ou mesmo ruins. A pior coisa para um homem na minha idade é não ter do que se recordar...

– Puxa, o senhor deve ter muita história!

– O pior, é não ter para quem contar... é isso que dói na solidão, não ter pra quem contar nossas recordações. Imagina o que seria de mim se não tivesse esses discos? Quando eu pego um compacto da Dalva de Oliveira, me vem na cabeça toda disputa para ver quem ganhava o título de Rainha do Rádio. Você por acaso sabe o que era isso?

– Eu só lembro o quanto meu pai gostava de ouvir rádio. Ele tinha um grandão que comprou para ouvir a Copa do Mundo de 1958, mas deve ter tido muitos outros antes daquele. Quando ele estava em casa, estava sempre ouvindo o rádio. Ouvia muita música também, tudo pelo rádio.

– Então ele deve ter acompanhado as disputas memoráveis entre Emilinha Borba e Marlene, Linda Batista, Dircinha Batista, Ângela Maria, Doris Monteiro... um punhado de divas, garoto!

 

O Radialista parece renascer depois de quase ter sucumbido na noite passada. A tarde avança e eles continuam conversando e ouvindo muita, muita música, como se estivessem no estúdio da Mayrink Veiga ou da Rádio Nacional. Durante todo o tempo que Rodrigo passou naquele pequeno apartamento de janela voltada para o minhocão, o Radialista não bebeu sequer uma gota de álcool. Foi a primeira vez que Rodrigo viu aquele homem feliz. Ele contou toda a história do concurso Rainha do Rádio, um concurso criado pela Associação Brasileira de Rádio com o objetivo de arrecadar fundos para a construção de um hospital. As transmissões eram todas feitas em auditórios repletos, com torcidas mais eufóricas do que as de futebol. A coisa era muito séria e gerava até rivalidades históricas entre as cantoras, exploradas pelos patrocinadores. Quem votava eram os ouvintes, em cédulas que vinham na Revista do Rádio. A primeira premiação foi em 1937 no Iate Laranjeiras, um barco carnavalesco. Linda Batista foi a campeã e manteve o título durante onze anos! 

– Em 1949 as cantoras Marlene e Emilinha Borba tiveram uma das maiores rivalidades da história. E como eu me dava bem com as duas, ficava sempre em cima do muro, sem jeito de dizer que torcia por uma ou pela outra. Para você ter uma ideia, a Antarctica estava lançando o Guaraná Caçulinha e entregou um cheque em branco pra Marlene para que ela comprasse quantas revistas fossem necessárias. Cada revista significava um voto. Ela foi eleita com quase 530.000 votos! A Emilinha acabou ficando em terceiro lugar, atrás da Ademilde Fonseca, outra chegada minha!

– Pelo jeito o senhor tinha cartaz com a mulherada, hein!

– Ah, mas aquele era um outro tempo, bem diferente de hoje. Um homem para chegar numa mulher tinha que ter muito mais do que lábia. Havia muito respeito, elegância, educação. Tinha que ter classe, você me entende? Não era essa esculhambação de hoje, até o carnaval era comportado. O que não quer dizer que não tinha as safadezas. Safadeza sempre teve e sempre vai ter, mas era tudo muito escondido e controlado. A Dalva de Oliveira e o Herivelto Martins, por exemplo, tiveram muitas brigas por causa de traição, a maioria da parte dele, o bicho era mulherengo mesmo; mas ela também aprontou das suas.

 

Ao perceber que seu Antenor está entrando numa espécie de melancolia, Rodrigo procura mudar de assunto, o que não é fácil. O Radialista tem uma espécie de blindagem da sua vida privada, uma área proibida onde ele não está autorizado a entrar.

 

Depois desse dia, Rodrigo ficou algumas semanas sem ver o Radialista. Chegou a ter aintenção de fazer parte da vida dele, mas logo desistiu. Havia ali uma barreira intransponível. Quando se reencontraram no boteco da Frei Caneca foi como se nada daquilo tivesse acontecido. Ele colocou sua rádio no ar como sempre fazia. Rodrigo era mais um ouvinte, entre tantos que se encostavam no balcão do boteco para comer um lanche, tomar umas cervejas ou para encher a cara e esquecer a crueldade do mundo.

 

Só um ano depois, Rodrigo voltou ao boteco. Esperava encontrar o Radialista no mesmo cantinho, dando conselhos aos ouvintes e tocando as músicas que melhor preenchiam a solidão de cada um deles. Sua rádio, porém, não existia mais, assim como ele. Morrera vítima de um enfarte fulminante. O zelador do prédio encontrou-o deitado na cama do apartamento com a janela voltada para o minhocão. Parecia estar sorrindo. Na vitrola, Dalva de Oliveira pedia:

 

Hoje, eu quero a paz de criança dormindo, e o abandono de flores se abrindo. Para enfeitar a noite do meu bem...

 

A notícia abalou Rodrigo de tal forma que ele resolveu ir para casa com aquela amargura no peito. A dura sensação de perda, mais uma na sua vida. Seu namoro com Anelise havia entrado naquela fase em que ambos percebem a queda do fascínio e a mesmice da rotina. Querem terminar, mas não sabem como. Toda separação, por mais desejada que seja, deixa sequelas emocionais e o que não faltava naquele momento eram sequelas emocionais. O Radialista se fora da mesma forma inesperada que aparecera. Difícil não reconhecer o apego emocional, mesmo que ambos nunca admitissem. Demorou a dormir imaginando o pobre homem morrer sozinho num pequeno apartamento quase que pendurado no minhocão. Morreu sorrindo, a melhor forma de morte, rápida, talvez indolor, um simples passar para o outro lado ao som de Dalva de Oliveira. Seu Antenor poderia ser seu pai, seu segundo pai, caso tivesse conseguido entrar um pouco mais na vida daquele homem solitário. Mas a sabedoria do homem simples não lhe deu esse espaço. O Radialista não queria, não admitia se apegar mais a ninguém, nem deixar que se apegassem a ele. Sua amada amante derradeira foi a música, talvez a única verdadeira e que esteve ao seu lado no último momento. Quando Rodrigo acordou, o sol nascia da mesma forma de sempre e a vida prosseguiria como sempre fazia a cada manhã. As horas se sucederiam, as noites se sucederiam, os dias e anos se sucederiam na marcha inexorável do tempo, deixando vidas pelo caminho e trazendo novas, num constante recomeçar.



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As rainhas do rádio

A história do rádio no Brasil


 


 

 


sexta-feira, 15 de julho de 2022

CAPÍTULO 11 - É NOITE, TUDO SE SABE... - PARTE 3

 

Capítulo 11 - É noite, tudo se sabe... - Parte 3



Na semana seguinte, já esquecido do episódio, e sem frequentar o boteco por alguns dias, acaba tirando o Radialista da cabeça.  Encontrara um novo sentido na vida. No próximo sábado teria um jantar especial com sua nova namorada. Decidira que o jantar seria no seu apartamento e estava bastante envolvido com os preparativos. Confiante nos seus avanços na culinária, nada melhor do que um jantar romântico para comprovar. Toda noite chegava em casa com uma coisa diferente e deixava tudo arrumado na cozinha. Faria um salmão com alcaparras, vinho branco e torta holandesa de sobremesa. Antes do jantar, abriria um champanhe e brindariam na sala, próximo à janela, sob a luz do luar.


A paixão, como já era esperado, estava mexendo muito com ele e quem primeiro percebeu foi o Radialista, certa noite quando ele apareceu no boteco depois da ausência prolongada.


É noite, tudo se sabe... Passarinho quando abandona o ninho é porque está com o coração partido ou, melhor ainda, porque encontrou um novo amor...


Naquele momento ele sentiu vontade de sentar-se ao lado do Radialista. Gostaria de dizer a ele o quanto estava apaixonado, pedir uma música e declarar o seu amor ao vivo, na rádio imaginária. Mas não teve coragem, algo naquele homem o impedia, continha suas ações. Ao mesmo tempo em que desejava conhecê-lo, sentia receio de se aproximar. Receio este mais de se mostrar do que descobrir no outro o que o fazia levar aquela vida. O Radialista continuou com sua programação noturna, pondo no ar músicas e declarações de ouvintes a dedo, como se estivesse também tentando se aproximar de Rodrigo.

Chegou cedo em casa para preparar o tão esperado jantar. Havia marcado para as sete horas, tinha ainda muito tempo para enfrentar o salmão e todos os seus acompanhamentos. Depois de preparar tudo, tomou um banho, colocou uma roupa nova, perfumou-se e ficou esperando sentado no banco da prancheta que ficava encostada à janela da sala. O telefone tocou e ele levantou-se de um pulo. Ela estava a caminho. Deu uma última conferida em todos os detalhes e ficou aguardando a chegada da namorada com quem já se considerava seriamente comprometido. Talvez fosse cedo para pensar assim, mas seu coração estava totalmente tomado. Vislumbrava o fim da sua solidão. Poderia focar melhor a vida. Não teria mais as caminhadas noturnas; em compensação, dividiria seus pensamentos com outra pessoa. Era uma troca justa e ele começava a pensar seriamente nisso.


Da janela da sala ele observa a rua e resolve descer para esperá-la na porta do prédio. Oferecera-se para buscá-la em casa, mas o sorriso e a afirmação de que sabia se cuidar dissuadiram-no. A noite estava muito bonita, a temperatura amena e uma lua cheia que dominava quase todo o céu. Encostado na parede do prédio ele observa o movimento na rua e, mais particularmente, no boteco. Dali ele pode ver a silhueta do Radialista no balcão, fumando compassivamente enquanto aguarda o momento certo de começar a beber e colocar sua rádio no ar. Quando Rodrigo menos espera, a namorada surge na esquina e ilumina seu coração.

Ao entrar no apartamento, a moça fica fascinada com o capricho da decoração à luz de velas, da mesa e da janela, onde uma faixa comemora a sua chegada. Recebe um ramalhete de flores do arquiteto mais do que apaixonado. À Anelise, a mulher mais linda e adorável do mundo! Anelise agarra-o pelo pescoço e lhe dá um prolongado beijo. Em seguida, ele pega a garrafa de champanhe na geladeira e vai até a janela. As taças são as únicas duas que ele tem e que nunca foram usadas juntas. A rolha parece ter sido soldada à garrafa, tal a força que ele faz para abri-la. Finalmente, dois estouros – o da rolha saindo da garrafa e depois atingindo o teto de um carro estacionado abaixo da janela. Ele finge se esconder e é abraçado novamente pela encantadora Anelise. Cruzam as mãos com as taças e bebem lentamente, entremeado de beijos.


– Você tem olhos verdes tão intensos!

– Quisera não tê-los.

– Por quê? São tão lindos!

– Na realidade, são um fardo que eu carrego. Se pudesse escolher, teria olhos normais...castanhos, pretos... verdes ou azuis, nem pensar!

– Você é estranho, sabia? Todo mundo gostaria de ter olhos claros. Eu adoraria...

– Você não precisa, já é linda com seus olhos negros. Isso tudo é ilusão; mas não adianta tentar explicar, ninguém entende...

– Eu não entendo mesmo, amor. O que pode haver de errado nos seus olhos?

– Nada. É bobagem minha, uma bobagem antiga que não vale a pena ser discutida agora.


   O cheiro do salmão sai pela janela e perfuma o céu enquanto o perfume de Anelise toma conta da sala. Na cabeça de Rodrigo, a paixão é sinestésica e confunde os sentidos. Terminado o jantar, os dois ficam deitados no sofá conversando sobre tudo e sobre nada. Passa da meia-noite, os dois vão para o quarto. Na pequena cama de solteiro, tentam equilibrar seus corpos em meio a afagos e carícias, mas são interrompidos pelo estridente barulho de sirenes descendo a Frei Caneca. Ignorada num primeiro momento, as sirenes se intensificam quando as viaturas de polícia param em frente ao prédio. Rodrigo se levanta nu como está e se coloca na janela, mantendo a luz do quarto desligada.


   Lá embaixo uma tremenda confusão se inicia. Bandidos que desciam a Frei Caneca perseguidos pelas viaturas policiais pararam o carro e entraram no hotel pela porta da frente assustando os funcionários da recepção. As viaturas chegaram fazendo barulho e bloquearam a rua. Rodrigo e Anelise observam a cena de uma posição privilegiada, de onde é possível ver todo o prédio do hotel e o terreno ao fundo. Policiais cercam toda a área, uma parte entra no hotel enquanto outros dão cobertura e um terceiro grupo tenta chegar pelos fundos e surpreender os bandidos que tentarem pular o muro. Funcionários e clientes do hotel saem desesperados, muitos de cuecas, mulheres enroladas em lençóis e outras apenas de calcinha, escondendo os seios. Passado o susto, Anelise começa a se divertir com o movimento inusitado.  Apesar de todo o aparato policial, os bandidos conseguem pular o muro e fugir pelos fundos sem que a polícia perceba. Rodrigo grita pela janela tentando alertar os policiais, mas ninguém ouve tal o barulho de vozes dos hóspedes e gritos dos policiais. De repente a rua fica repleta de gente saída de todos os cantos. A multidão se dispersa ao mesmo tempo que os policiais percebem que foram enganados pelos bandidos. Entram nas viaturas com armas em punho e saem em alta velocidade cantando os pneus.


    Os dois deixam a janela assim que o silêncio volta a dominar a noite, quebrado apenas pelos sussurros, risos e murmúrios de gozo. Entregam-se ao jogo amoroso com a vontade e a volúpia da juventude.

– Não sei qual o seu problema com os seus olhos, sei apenas que é maravilhoso ser iluminada por eles depois de receber tanto amor, carinho e prazer...

– Talvez eles iluminem demais e acabem me ofuscando.

– Esquece, eu não vou analisar você, não sou psicóloga, sou jornalista. Como jornalista, meu dever é relatar os fatos tal como eles se apresentam. E quanto a você, meu gostoso arquiteto, não há nada que o ofusque.


    O novo dia começa a surgir por volta das cinco horas. Rodrigo abre a porta da rua e os dois saem abraçados, dobram a esquina e seguem pela Rua Marquês de Paranaguá até onde o carro dela está estacionado. Despedem-se com um longo beijo. Ele espera o carro dar a partida e volta de cabeça erguida, sem pensar em nada que não se refira a amor.


     Próximo à esquina do boteco, assusta-se ao ver o Radialista caído na calçada. Provavelmente ele estava muito bêbado quando o bar fechou, deitou-se ali e passou a noite ao relento. Ao se aproximar, Rodrigo sente o forte odor de urina. Pensa em voltar, mas dentro de si surge um apelo para que fique. O Radialista levanta a cabeça, olha fixo para ele e sorri o sorriso mais triste que ele já presenciara. Dos seus olhos escorrem lágrimas solitárias. Olham-se durante alguns segundos. O tempo necessário para o Radialista voltar ao mundo. Sua voz ecoa tão firme que ele nem parece estar naquele estado deplorável.


Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver, quero a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem... hoje, eu quero a paz de criança dormindo, e o abandono de flores se abrindo. Para enfeitar a noite do meu bem... É noite, tudo se sabe...




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quinta-feira, 7 de julho de 2022

CAPÍTULO 11 - É NOITE, TUDO SE SABE... - PARTE 2

 

Capítulo 11 - É noite, tudo se sabe... - Parte 2



Paralisado, Rodrigo vê toda a cena em câmera lenta, como se fosse um filme. O motorista causador do acidente desce do carro, atordoado, e é socorrido por algumas pessoas enquanto muitas outras aparecem surgidas do nada e cercam a ambulância. Rodrigo se aproxima, contendo o medo de encarar o sangue, a morte. A agonia comprime o seu peito, causando um mal-estar incontrolável. Policiais conseguem abrir as portas da ambulância e Rodrigo não acredita no que vê. Da ambulância rola o corpo gigantesco de Dona Filomena, com seu vestido branco manchado de sangue. Atrás dela, seu Duca, com a arma ainda fumegante na mão, gira o corpo e aponta o revólver para a outra pessoa de bruços na maca. O homem se vira e Rodrigo percebe que é seu pai. Transtornado, ele se afasta da ambulância sentindo o cheiro de asfalto queimado, o barulho da sirene que não cessa e a confusão de gritos vindos do redemoinho de gente.


     Ele chega no boteco com o coração acelerado. Senta no banco de sempre. O dono do boteco percebe a palidez no rosto dele. 


 – Aconteceu alguma coisa, garoto?

 – Nada... me dá um conhaque! 

 – Tem certeza? Você não é de beber. 

     – Deixa o garotoresmunga o Radialista, amuado no seu canto. O dono do bar pega um conhaque da pior qualidade – Assim você ofende o rapaz, tem coisa melhor aí. Traz um Presidente, se ele não puder pagar, eu pago. Bebe aí, garoto, afoga suas mágoas!


Rodrigo toma o primeiro gole com avidez e quase vomita. 


     – Devagar, garoto, isso aí não é cerveja e não é assim que se bebe. Se quiser beber, tem de aprender a beber. Sem pressa, sinta sua garganta ser aquecida lentamente. Tem que dar uma boa pausa entre um gole e outro, afinal você não é nenhum sobrevivente do deserto na frente de um copo d’água. Bebe aí e escuta o rádio, porque é noite, tudo se sabe...


     “Meu mundo caiu e me fez ficar assim. Você conseguiu, e agora diz que tem pena de mim”


     Rodrigo encara o Radialista tentando imaginar se o homem tem noção do que está se passando na sua cabeça depois daquela alucinação na frente da ambulância. Sentado naquele cantinho, bebendo, falando coisas desconexas, cantando e observando cada um dos frequentadores da casa, o Radialista parece adivinhar o que se passa no coração de cada um. Quem sabe ele não é um bruxo, ou então, a encarnação de Gabriel, seu libertador? Poucas pessoas têm a sensibilidade de Rodrigo, muito menos a do Radialista. Só que, desta vez, o Radialista se engana ao pensar que a dor de Rodrigo é causada por alguma desilusão amorosa. Ele sente culpa, medo, angústia, saudade...


     Estamos na ZYK 35, rádio Mayrink Veiga. É noite, tudo se sabe... Nossa ouvinte, Maria das Dores, de Araçoiaba da Serra ligou pedindo a música Maria, Maria, de Milton Nascimento. Ela gosta dessa música porque a faz lembrar de que tem de ser sempre forte, compassiva e disposta a ajudar os outros, não importando que esteja se sentindo fraca, como agora. Antes de ouvir a música, cara Das Dores, lembre-se que você não é a salvadora do mundo, não se pode ser forte o tempo todo, há momentos em que nos sentimos fracos e isso não é covardia, é apenas a lembrança de que somos humanos e de que o peso da vida é muito maior do que sonhamos poder aguentar. Seja forte sempre que for necessário, mas não se culpe quando a fraqueza vier, confie que quando você se sentir fraca, haverá sempre alguém mais forte para lhe apoiar, se não houver ninguém, com certeza Deus estará ali esperando você erguer os olhos na direção dele e pedir ajuda... É noite, tudo se sabe... 

   

     No silêncio do seu quarto, Rodrigo relembra as palavras do Radialista. “Será que ele falou para mim? ” Pensa na sua mãe, nos irmãos, na vida dura que eles continuam levando, pensa também na sua própria vida. Está sozinho, economizando cada centavo para se manter naquele cantinho, mas ainda sem visão de futuro. “Será que eu sou um idealista, sem ação? Por que sofro tanto com o sofrimento dos outros? Por que me apego tanto a mendigos, bêbados, prostitutas, meninos de rua e mais uma porção de pirados espalhados pela cidade? Sofro por eles, mas nada faço por eles. Será que tenho medo de um dia me tornar um deles? ”


     Adormece sem respostas. Acorda atrasado e com dor de cabeça, coisa que dificilmente acontece com ele. Toma um banho rápido, coloca uma camiseta e uma calça jeans e desce com o passo acelerado em direção à padaria da Rua Martins Fontes. Não gosta de chegar atrasado, mas detesta comer correndo. A padaria, como sempre, está cheia. Ele pega seu café e pão com manteiga e senta-se na mesa ao lado da janela. Dali pode observar o movimento na rua. Revive as impressões da noite anterior. Que alucinação foi aquela? Melhor esquecer e esperar que isso não aconteça mais. Tenta se convencer de que ter saído de lá rapidamente foi a melhor escolha, não tinha como ser útil naquelas circunstâncias. Quem sabe a ambulância estivesse vazia e o motorista, apressado, tenha acionado a sirene de propósito? Quem sabe?


     Envolto em seus pensamentos, não percebe o que se passa no outro lado da rua. Quando se dá conta, vê uma senhora caída na calçada, circundada por um grupo de pessoas. Parece que a mulher tropeçou ou sentiu-se mal e acabou caindo. Termina o café e caminha até o local. A mulher acabou de ser levantada por dois homens. Um deles, o Radialista. Rodrigo fica confuso e sem ação. Estranho vê-lo à luz do dia, sóbrio e prestativo. Já recuperada, a mulher agradece, o grupo se dispersa e ela segue seu caminho. Ficam apenas os dois. 


     – Pessoas idosas não deviam andar sozinhas pelas ruas do centro, você não acha, garoto?

 – É, acho que não...

 – Você está bem, garoto? 

 – Claro, estou atrasado para o trabalho...

 – Você não é o único, nesta cidade todo mundo está sempre atrasado.


     Despedem-se e cada qual segue o seu caminho. Rodrigo, ainda tentando entender como uma pessoa pode ter duas personalidades, uma à noite outra durante o dia. “Ele não me reconheceu. Será que não? Ele pode ter me reconhecido mas preferiu não demonstrar. Fiquei sem saber o que dizer, era como se fosse outra pessoa. Poderia ter perguntado o nome dele, onde ele mora, o que faz. Será mesmo? Talvez o melhor seja deixar como está, o homem que eu acabo de ver não era o Radialista, era um pedestre a mais caminhando pelo centro da cidade”.


Rodrigo não consegue esquecer do Radialista durante todo o dia. Fica imaginando mil vidas para ele. “É casado, tem dois filhos e trabalha numa concessionária de carros... solteiro, morando sozinho num apartamento próximo ao trabalho... separado, uma neta de cinco anos que ele faz questão de buscar todo dia na escola... funcionário público, nas horas vagas trabalha numa pequena rádio de bairro... começou a beber por causa de uma decepção amorosa...” Nada, porém, se encaixa no perfil do Radialista.

     



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CAPÍTULO 17 - OLHOS VERDES

  Capítulo 17 - Olhos verdes - parte 1 O sol castiga o centro velho da cidade de São Paulo, apinhado de gente indo e vindo freneticamente. U...