sexta-feira, 30 de setembro de 2022

CAPÍTULO 15 - O COMANDANTE

 


Capítulo 15 - O comandante

 

O trânsito era intenso durante a madrugada na Rua Peixoto Gomide, entre a Frei Caneca e a Augusta, não só na rua como também nas calçadas por onde eu andava em meio a um cenário deprimente. Eu sabia que ali era o ponto de encontro de jovens e adolescentes que não podem entrar nas casas noturnas para maiores de idade e também a “feira livre” de drogas. Entre os carros parados no trânsito, circulavam traficantes com as mãos carregadas de pinos de cocaína, maconha, comprimidos de ecstasy, cartelas coloridas de LSD e gotas do anestésico GHB, também usado como estimulante sexual. Era junho de 2013, na época eu não sabia o nome dessas coisas todas, sabia apenas as consequências que cada uma delas acarretava nesses jovens bem de vida, mas ruins de cabeça.

Sentados na calçada, adolescentes cheiravam cocaína, bebiam catuaba e vodca. A iluminação fraca facilitava o trabalho de negociação dos traficantes trajando casacos e moletons para guardar as drogas nos bolsos. Um garoto se levanta e chama um grupo que passa na outra calçada.

– Chega aí, mano! A festa aqui é melhor que a balada mil vezes. A gente pode fumar, beber e ser feliz, de boa. Rola muita mina e a galera arrasta mesmo!

Ao lado deles, dois garotos desmaiados, enquanto outro se retorcia na calçada com os lábios sangrando de tanto mordê-los.

– Me compra um pó, preciso ficar mais acordado, por favor!

Tudo aquilo eu via sem parar minha caminhada. Andava a esmo como sempre e com uma pressa totalmente descabida porque não tinha compromisso nenhum, muito menos um lugar para descansar meu corpo alquebrado.

À minha frente um grupo de gays que frequentavam boates da Frei Caneca fazia o aquecimento antes da balada com pó, ecstasy e bebida nos barzinhos da região ou na própria calçada da Peixoto Gomide. Eles conhecem as ruas e preferem andar sempre em grupos porque temem ataques homofóbicos de skinheads. E foi justamente por esse caminho que resolvi passar. Minha presença, como sempre, não era bem recebida pelos traficantes.

– Vaza, vaza, cai fora daqui senão a gente põe fogo em você!

Apressei o passo e quando cheguei na esquina da Frei Caneca fui surpreendido por um grupo de carecas vindos pela mesma calçada. Na frente vinha o mais forte deles, agitado e dando socos no ar. Quando percebi já não dava tempo de voltar ou sair da calçada. Dei de cara com o troglodita e nem tive tempo de esboçar qualquer reação. Fui socado e atirado no cimento duro da calçada.

– Sai pra lá, coisa suja! Tu é gay, por acaso? Tô a fim de arregaçar viadinhos hoje, sai do meu caminho!

Começou o festival de chutes e pontapés sem que eu conseguisse me proteger dos golpes. Quando achei que eles fossem acabar comigo, ouvi o som de uma viatura se aproximando. Os porras dos carecas covardes fugiram sem muita pressa e ainda praguejando como se fossem os donos da rua, os donos da cidade. Tentei levantar e caí novamente.

Fui amparado por um dos policiais que prestou o atendimento convencional de primeiros socorros. Eles queriam me levar para um pronto socorro ou albergue e eu me recusei. Já passei muita merda nesses lugares, preferia me recuperar sozinho, da forma que eu já estava acostumado. Eles também não insistiram muito nem fizeram questão de perguntar quem tinha me agredido. A viatura continuou a ronda sem dar atenção ao movimento dos jovens e ao comércio enrustido na rua.

Tentei continuar seguindo meu caminho pelas calçadas congestionadas de garotos bebendo misturas alcoólicas em garrafas pet de refrigerantes. Estava meio zonzo devido à queda e às pancadas. Passei a mão pelo meu rosto e vi que estava manchado de sangue. Devia estar também em outras partes do corpo. Completamente sem forças, resolvi deitar na calçada, esperando não ser incomodado por ninguém. Com o rosto colado ao chão pude ver três rapazes se aproximando. Meu instinto me fez recuar mesmo que me arrastando pela maldita calçada.

– Tranquilo aí, tio, não vamos fazer nenhuma maldade com o senhor. Só queremos ajudar.

– Ajudar por quê? Ninguém ajuda ninguém.

– Fica frio, a gente é do bem. Vimos quando aqueles carecas da porra agrediram o senhor. Como o senhor está se sentindo?

– A merda de sempre, só que agora com muita dor. Nas costas, nas pernas, não tô nem conseguindo andar.

– Calma que a gente vai tirar o senhor daqui.

– Nem adianta que eu não vou pra hospital nem pra albergue...

– Não esquenta, tamo de boa, o senhor vai pra um lugar manero, vai gostar de lá.

– Delegacia, nem vem!

– Já falei, tamo de boa.

Eles me colocaram no banco de trás de uma Kombi bem detonada. Não dava para ver, mas acho que seguiram em direção ao centro. Adormeci sem ser incomodado pelos solavancos e curvas fechadas nas ruas estreitas. Chegamos num casarão antigo parecendo abandonado. Eles me retiraram do carro e me carregaram até um dos quartos, no andar de cima da casa. Tiraram minhas roupas e me colocaram debaixo de um maldito chuveiro. Quando me dei conta do que estava acontecendo, recebi uma forte ducha de água fria.

– O que é isso, estão querendo me matar?

– Nada disso, tio. É só um banho, acho que há muito tempo o senhor não sabe o que é isso.

– E por que razão eu tenho que tomar essa porra desse banho agora?

– Fica quieto aí senão o senhor se machuca mais.

Mesmo com muito protesto me deram um banho completo, com sabão, shampoo e essas merdas todas. Depois me enxugaram, botaram um pijama, sei lá, e me deitaram numa das quatro camas espremidas no espaço pequeno do quarto. Numa delas havia crianças brincando e um casal trocando carícias, se esfregando na frente das crianças como se estivessem sozinhos em lua de mel. Depois de um bom tempo percebi o movimento de jovens aparentemente dedicados a tarefas distintas. Dois deles, carregando máquinas fotográficas saíram apressados dizendo que iam cobrir as manifestações.

Em volta de uma grande mesa rapazes e moças em frenética agitação digitavam naqueles aparelhos tipo computadores pequenos e celulares, outros falavam em aparelhos fixos, naquilo que parecia ser uma sala de redação. Foi isso que me disseram depois porque na hora eu não entendia merda nenhuma daquilo tudo que estava acontecendo. Antes disso, eu resolvi sair da cama, aí apareceu uma mulher não tão jovem quanto as outras e com cara de enfermeira nazista.

– Não, não, não... pode ficar aí mesmo, o senhor precisa descansar e eu tenho de fazer uns curativos no seu rosto e nos ferimentos espalhados pelo seu corpo. 

– Mas eu já tô bom, preciso ir embora...

– Pra onde? Tem pra onde ir, por acaso?

– Pra lugar nenhum... tô acostumado a não ir pra lugar nenhum...

– Não está gostando daqui?

– Que merda de lugar é esse?

– Chihhhh.... Olha a educação, tem criança no quarto!

Aí eu tive vontade de perguntar para ela por que justamente eu é que tinha de ter educação se tinha um casal quase trepando na frente das crianças, mas resolvi não dizer nada, já estava cansado de levar porrada, queria era vazar logo dali. Pelo jeito ia demorar porque a enfermeirona nazi estava disposta a cuidar mesmo de mim. Ela tinha jeito para a coisa, estava conseguindo aliviar as minhas dores. Apesar da aparente dureza tinha mãos delicadas.

O cheiro de água oxigenada, mercúrio cromo e outras porcarias que ela passava pelo meu corpo foi me dando uma moleza gostosa. Só não conseguia entender por que estavam me tratando daquela forma, como gente! Perguntei a ela que lugar era aquele e ela me disse que era um tal de coletivo, uma porra assim. Enquanto fazia os curativos ela ia explicando que merda era aquela e eu tentando entender a razão de toda aquela gente amontoada naquele casarão como se fosse a casa de todo mundo. Ela disse que lá era realmente a casa de todo mundo. Qualquer um podia se instalar ali, o lugar era de todo mundo e de ninguém em particular. Ela falava, falava, e eu tentava entender como aquela birosca podia funcionar se ninguém era dono de nada porque, pelo que ela falou, tudo ali era livre, ninguém era dono de nada, nem das crianças! Quer dizer, aquelas crianças iam crescer sem saber quem era o pai ou mãe, todos faziam esse papel.

Para mim que já estava há muito tempo morando nas ruas, era difícil compreender tudo aquilo que estava rolando na porra daquele casarão. Olhei para o lado e vi que o casal estava realmente trepando na frente das crianças e ninguém parecia se incomodar com isso. Me deu até uma tontura, será que o mundo já está assim e eu não tinha me dado conta?

A essas alturas, eu estava só com o calção do pijama, a mulherona nazi esfregando meu corpo e aqueles dois gemendo na cama do lado e eu me sentindo mais deslocado do que um gambá numa perfumaria. Quis levantar porque percebi que aquilo tudo estava começando a dar um tesão danado em mim, já há tanto tempo sem encostar numa mulher. Ela me segurou e disse para eu não me reprimir. Que porra significava aquilo, não se reprimir? Entendi logo. Ela abaixou o meu calção e começou a me masturbar.

– Ei, o que é isso?

– Fica quieto, faz parte do tratamento.

– Que tratamento? Eu não estou machucado aí!

– Você parece que não entendeu nossa filosofia de liberdade. Liberte seu corpo e libertará sua mente. Eu não lhe expliquei que isso aqui é um coletivo? Vivemos a experiência de negação de tudo quanto é posse, material e espiritual, o ser humano livre de todas as amarras da sociedade, obedecendo apenas aos instintos da natureza.

Ela continuou explicando todo o funcionamento daquela comunidade sem parar de me masturbar, sem perder o ritmo. Eu já não conseguia me concentrar nas explicações dela, pouco me importava se aquela cama devia ou não ter dono, o que me interessava realmente eram os movimentos da mão dela.

Como eu estava precisando daquilo! Há quanto tempo eu não sabia mais o que era sentir prazer? Minha mente confusa e atribulada começava a ter uns bons minutos de paz e eu me lembrei de Vanessa. Ah, Vanessa... A enfermeira fazia aquilo mecanicamente. Apesar disso, despertou em mim o carinho esquecido e adormecido. Olhei para ela como se estivesse olhando para Vanessa e senti amor por ela, amor fugaz que duraria alguns segundos ou minutos, no máximo.

– Esses seus olhos verdes são de uma beleza indescritível...

Aí, ela tirou a roupa e subiu em cima de mim. Cavalgou um bom tempo em cima de mim e eu só pensando em Vanessa. Minha querida, por que eu perdi você? Por que fugi de você e de nossa criança? As lágrimas rolaram dos meus olhos simultaneamente ao meu sêmen dentro daquela mulher desconhecida. Eu estava gozando. Há milênios eu não gozava dentro de uma mulher porque desde que perdi Vanessa jamais estivera com outra mulher.

– Por que você está chorando? – ela perguntou enquanto saía de cima de mim, limpava minha genitália toda, colocava as suas roupas, meu calção, e continuava a fazer os curativos na minha perna.

– Lembranças...

– Todo mundo tem um passado. Aqui, não nos preocupamos com isso, cada indivíduo é um mundo à parte. Logo você vai se acostumar com isso.

– Mas eu não tenho intenção de ficar aqui.

– Por quê, se você não tem onde ficar?

– Eu tenho sim, tenho a cidade toda, posso ficar onde quiser...

E ser tratado da forma como foi tratado hoje?

– Isso também é uma forma de liberdade. O homem está condenado a ser livre, não é assim?

– Ah, um mendigo existencialista! Você ainda não me respondeu por que chorou, que lembranças fizeram você chorar...

Neste momento entrou no quarto um homem idoso, com trajes de adolescente contrastando com sua barba branca e seu rabo de cavalo preso com um prendedor em forma de um brasão que eu não consegui identificar. Ele olhou para mim e perguntou quem eu era. Ela explicou como fui achado e como os três rapazes me entregaram aos cuidados dela. Ele perguntou meu nome e eu disse que já nem me lembrava porque nome é material totalmente desnecessário para um morador de rua.

Fiquei sabendo que ele era o “Comandante”. Tipo o mandachuva de lá. Disse que eu era livre para ficar ou sair, mas que não saísse antes de falar com ele. Aquilo soou como uma ordem. Eu já não sabia se era manhã, tarde ou noite. Sabia apenas que precisava dormir um pouco. Adormeci pensando em Vanessa e na minha filha.

Fiquei uns dois ou três dias naquele lugar sem que o Comandante prestasse atenção em mim em meio a tantas atividades, todas elas ligadas às manifestações contra o aumento da passagem dos ônibus. Aquilo tudo para mim não dizia nada, nem de ônibus eu andava e tinha muita gente ali que estava interessada apenas em usufruir das coisas sem dono e das sacanagens que rolavam naquela “experiência comunitária do século 21”.

Fui embora sem me despedir da minha enfermeira. Apesar de toda aquela liberdade eu não me sentia livre naquele casarão. Estava acostumado demais à vida de sem-teto e ali tinha teto demais para mim. Guardo uma boa recordação da enfermeira, não exatamente por ela ter, em teoria, me estuprado. Uma única vez, é bom que se diga! A boa recordação que guardo dela deve-se ao fato de ela ter me tratado como gente e reconhecido que por baixo disso tudo que eu me tornei existia uma alma boa, bastante perdida, mas uma alma boa.

Quanto ao Comandante, também não nos despedimos. Algo nele me assustava ou incomodava, não sei qual a palavra adequada. Ele me parecia familiar, tipo conhecido de vidas passadas, essas lorotas todas que servem como justificativas baseadas em espiritismo quando não entendemos a nossa ligação com pessoas desconhecidas. Toda vez que ele passava por mim, eu estremecia como se dele emanasse uma coisa que eu não sabia exatamente dizer o que era, mas que mexia com a minha cabeça e com o meu corpo. Ainda por cima, ele também tinha os olhos verdes.



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domingo, 18 de setembro de 2022

CAPÍTULO 14 - IT´S NOW OR NEVER

 

Capítulo 14 - It´s now or never

 

Começamos o primeiro dia do ano de 1992 em nosso apartamento alugado um dia antes de eu perder o emprego. Não estava em completa desordem justamente porque faltava mobília; aliás, faltava muita coisa ali, praticamente tudo. A sala grande parecia ainda maior com a solitária mesa cercada por quatro cadeiras de madeira com estofados que lhes davam uma certa imponência, considerando-se, é claro, a escassez generalizada e fazendo-se um bom esforço teórico para chamar aquilo de lar.


Uma garrafa de whisky Ballantines Gold Seal 12 anos, vazia, descansava na pequena varanda do segundo andar de um prédio antigo na Rua Bela Cintra, esquina com a Pedro Taques, vizinha ao cemitério da Consolação. Havia na esquina uma padaria, a Casa de Pães Nova Cintra, e, do outro lado da rua, o prédio da CET – Companhia de Engenharia de Tráfego.


Como todo dia primeiro de qualquer ano, a cidade estava deserta e o silêncio tomava conta daquele prédio antigo, onde cada aposento tinha altura e dimensões pouco usuais para os padrões de hoje, o que realçava ainda mais a nossa dificuldade em preencher os espaços com as poucas coisas que trazíamos de nossas vidas de solteiros. O quarto destacava-se do resto por causa da cama e dos criados-mudos em estilo colonial, do armário embutido recém pintado e das cortinas suaves e elegantes emoldurando a larga janela voltada para a Nova Cintra. Um leito conjugal, apesar das carências. Debaixo dos lençóis mantínhamos nossos corpos entrelaçados a descansar daquela que deveria ter sido a longa noite de fim de ano. Dominados pelo sono, cedemos aos apelos do corpo e abreviamos nossa comemoração solitária da chegada do nosso primeiro Ano-Novo de casados.


Incrível como o destino lança mão de variados recursos para unir almas distintas em relacionamentos tão improváveis que, ao contrário do que mostram as evidências, perduram por anos seguidos mesmo com muita gente apostando contra. A verdade é que eu estava desempregado, tendo de pagar aluguel e manter nossas vidas com o que havia recebido da minha demissão. Vanessa estava dando aulas de biologia em uma escola da rede pública, com promessas de transferir-se para uma escola particular e aumentar sua renda. Era penoso ver minha princesinha burguesa pegando ônibus toda manhã rumo à escola pública na zona sul da cidade. Pensava até quando ela resistiria e, inevitavelmente, batia aquele sentimento de culpa como se eu a tivesse obrigado a isso. Ela procurava da melhor forma possível demonstrar que aquilo tudo era normal e passageiro, em breve eu estaria trabalhando e ela dando aulas em uma escola melhor.

 

Chegamos heroicamente ao final do ano, mas sem gás para comemorações, literalmente! Tínhamos comprado um fogão preparado para gás de rua e a companhia de gás abusou do pretenso direito de atrasar a instalação. Trocar para gás de botijão e depois retornar para gás de rua não era economicamente viável. Foi um bom tempo comendo lanche frio, pizzas delivery e tudo o mais que não precisasse ser cozido ou esquentado. Uma noite, quando eu já não aguentava mais comer pão com queijo e presunto, fiz uma via sacra pela região à procura de uma ‘televisão de cachorro’, ansiando por um frango assado, mas tive de me contentar com pão e manteiga. O Natal foi uma tristeza só, o presente que eu mais esperava era um emprego. Além do saco do Papai Noel chegar vazio, o dono dele não tinha nenhuma credencial de head hunter e tivemos de nos contentar em virar o ano sem gás, sem emprego e praticamente sem móveis na casa.

 

Apesar dos trinta e oito anos, eu não tinha a experiência de vida necessária para enfrentar essas situações em início de casamento. Mesmo assustado, tentava não demonstrar meus receios a Vanessa. Meu temor era que na hora que o cinto apertasse ela voltaria correndo para casa dos pais porque não fora criada para passar privações. Eu mesmo não sabia até que ponto ela acreditava que o amor e uma cabana bastariam para satisfazê-la. Era uma mulher mimada, não tinha a mínima intimidade com a cozinha nem com os assuntos de uma dona de casa. Até ali, porém, esteve firme na determinação de não receber ajuda da família mesmo estando sujeita a passar privações.

 

A última noite do ano começou arrastada e despretensiosa. Eu queria mais era que o ano acabasse logo e, junto com o novo ano, viessem as mudanças necessárias para adubar as raízes da nossa vida conjugal. Vanessa preparou a mesa, uma ceia frugal, dentro das nossas condições. Lá fora os fogos começavam a estourar e pela janela eu via pessoas se dirigindo à Paulista para assistir ao show da virada. Perguntei se ela queria ir sabendo que a resposta seria negativa, eu mesmo não tinha a menor disposição para festas. Perto da meia-noite comemos a nossa ceia, liguei para minha família e ela para dela. Preferimos não comentar nada do que foi conversado. Aí, eu realmente senti o quanto estávamos sós.

 

Quando a meia-noite chegou encontrou-nos abraçados e murmurando palavras de conforto e encorajamento. Precisávamos disso porque sabíamos que estávamos sós e que havíamos escolhido nosso destino. Encostados à janela assistíamos ao espetáculo de fogos de artifícios no céu encoberto de São Paulo. Neste momento milhões de famílias estavam reunidas comemorando justamente o que não tínhamos motivação para comemorar. Casas cheias, mesas fartas, outras nem tanto, corações transbordando de alegria e ansiedade pelo novo ano.

 

Em Brasília outro casal comemorava discretamente o réveillon na Casa da Dinda. Fernando e Rosane Collor mandaram recolher o toldo, dispensaram a orquestra e demitiram o buffet, ficando apenas os enfeites luminosos distribuídos pelo jardim e a presença de cinco casais de amigos para o jantar na entrada do ano. A festa seria para um número maior de convidados, mas a primeira-dama divulgou antecipadamente a programação, o que irritou o caçador de marajás. Assim, ele evitou repetir o tipo de comemoração do ano anterior, a bordo do iate de um empresário famoso, em Angra dos Reis. A entrada do ano acabou sendo comemorada com uma ceia preparada em casa, sem faltar, é claro, o champanhe Cristal envelhecido no ponto.

 

A única regalia a que eu não abria mão era começar o ano degustando meu Ballantines Gold Seal 12 anos, que eu mantinha guardado no armário improvisado da nossa Casa da Dinda. O whisky, é claro, não foi comprado e sim ganho de um representante de uma empresa quando eu ainda trabalhava. Abri a geladeira quase vazia em busca dos potinhos de gelo, os copos não eram exatamente os adequados, mas o que importava mesmo era a qualidade da bebida. Eu não era o elegante e aventureiro presidente da República, mas tinha minha Cristal de entrada de ano! Peguei a caixa no armário da cozinha e caminhei da forma mais imponente que consegui até a varanda onde minha primeira-dama me aguardava. Eu já vinha com um pequeno discurso na cabeça para marcar o momento tão especial, um oásis de prosperidade no nosso deserto econômico. A decepção, entretanto, foi enorme! Ao retirar a garrafa da caixa percebi, desolado, que ela continha tão somente água para compensar o peso pois o conteúdo original já havia sido degustado por outras bocas.

 

Vanessa tentou me consolar, justificando que a bebida não era importante e sim estarmos juntos e fortes. Agradeci o apoio sem muito ardor. Derramei a água envelhecida na calçada e larguei a garrafa na varanda, culpando-me seriamente pela minha inocência ao ter deixado a garrafa no armário do trabalho por dois dias, o suficiente para os saqueadores do escritório fazerem a festa com o “meu 12 anos”. Assim começou nosso ano. Depois da farta comemoração resolvemos ir para a cama. E dormir!

 

Acordamos como se tivéssemos saído de um furacão, com o corpo indolente e cercados por um silêncio impensável para a cidade, ouvíamos apenas sussurros sob a janela. Até que o vozeirão veio e tomou conta do ar.

 

It´s now or never, come hold me tight. Kiss me my darling, be mine tonight. Tomorrow will be too late, it´s now or never my love won´t wait…”

 

Tanto eu quanto Vanessa dominávamos a língua de Shakespeare o bastante para saber que o inglês era perfeito. A voz mesclava o tom grave com a suavidade de um veludo a rolar em um gramado verde e macio. Encantada, Vanessa permaneceu sentada na cama ouvindo a melodia como se fosse uma serenata encomendada para nós dois. Era difícil pensar qualquer coisa diferente porque parecia que o mundo havia parado e só nós dois permanecíamos nele embalados por aquela voz surpreendente. A surpresa foi tão grande que tirou de nós até a curiosidade a respeito do dono daquela voz. Não era uma gravação, era som original de violão com voz natural. O Elvis não morreu, brinquei e ela sorriu como há muito tempo não sorria.

 

Meu coração estava novamente sendo capturado por Vanessa. Toda a amargura da noite anterior e dos últimos meses abandonaram minha alma rendida pela emoção e pelo sorriso meigo da minha mulher, daquela que havia escolhido abandonar a vida confortável para dividir comigo os sacrifícios de uma vida a dois precocemente marcada pela carência, não de amor, mas de conforto e segurança financeira. Naqueles momentos de transe em que, abraçados sob os lençóis, escutávamos a música encantadora vinda da rua, meu coração se acalmou e eu pude vislumbrar um futuro menos carregado do que o que vinha se projetando na minha mente. Talvez o meu julgamento a respeito da aposta de Vanessa em uma união sustentada apenas pelo amor não fosse o mais correto. Quem sabe fosse verdade a afirmação de que o amor vence todas as barreiras e dificuldades! Ela me beijou docemente e eu me deixei levar pela sua entrega. Era minha mulher, a mulher que eu amava de uma forma tão grande que eu ainda não tinha me dado conta e, por causa disso, estava sendo dominado pelo medo.

 

Love me tender, love me sweet never let me go. You have made my life complete and I love you so.”

 

Ela me amava de verdade e eu conseguia vislumbrar meus sonhos que antes pareciam inatingíveis. Pedi e ela repetiu várias vezes que era minha e que seríamos para sempre um do outro. Ouvir essas coisas com trilha musical própria, ao vivo, cantada exclusivamente para nós dois num cantinho ainda incompleto de lar causava uma enorme excitação. Fizemos amor de uma forma tão intensa, tão emocionada, tão carregada de paixão como nunca havíamos feito antes. Depois ficamos largados na cama sentindo o cheiro do sexo e ouvindo as músicas do Elvis que pareciam infindáveis até que ela parou de repente e foi como se algo inusitado tivesse acontecido, como se a música fizesse parte do mundo e que nos acompanharia para sempre.

 

Levantamos do jeito que estávamos e fomos até a janela ver quem tinha sido a alma bondosa que nos presenteara com aquela dádiva de início de ano. Do outro lado da rua, para nossa surpresa, estavam dois mendigos sentados na calçada comendo pão com manteiga como se fosse a Santa Ceia. Olhei bem para eles. Um deles era baixo, gordo, com a barba espessa, touca de lã na cabeça apesar do calor do sol das dez da manhã. O outro, o cantor, era negro, magro e alto, cabelo rastafári, olhar doce e sorriso delicado. Usava uma blusa de lã preta e uma calça de agasalho azul com as famosas três tiras. A calça devia ser uns dois números menor, ficando as canelas de fora e os pés amparados por sandálias havaianas também menores do que seus pés. Ele comia com avidez, mas sem largar o violão preto e azul amparado no colo. Do lado, um copo de água mineral contendo água ou, mais provavelmente, cachaça. Quando ele nos viu na janela, abriu um sorriso acanhado. Vanessa agradeceu pela serenata. Ele terminou de comer, limpou a boca com alguns guardanapos de papel, tomou um pouco do líquido e levantou-se, apoiado na parede. Segurou o violão com firmeza e aproximou-se ainda mais da janela. Levantou a cabeça, olhou fixamente para Vanessa e disse:

 

– E agora, uma pontinha de Roberto Carlos! “Não adianta nem tentar me esquecer. Durante muito tempo em sua vida eu vou viver... Detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes pra esquecer e a toda hora vão estar presentes. Você vai ver...”

 

Percebi então que, em tudo na vida, o que faz a diferença são os detalhes. Tanto na intensidade do amor que tínhamos acabado de oferecer um ao outro quanto na dedicação daquele mendigo negro, sujo e provavelmente bêbado em tocar e cantar músicas tão românticas para um casal que estava começando a vida num apartamento modesto, sem móveis, sem emprego, sem amigos e sem vida social, mas com um teto para nos cobrir. Senti um nó na garganta e uma vontade de não dizer nada, ficar em silêncio, segurando a mão de Vanessa, completamente nus na beirada de uma janela ouvindo com o coração as canções do rei na voz de um mendigo.

 

Eles permaneceram ali até perto do meio-dia, um tocando e cantando e o outro apenas sentado ouvindo. O repertório do rei acabou e ele voltou para calçada, sentou-se ao lado do outro e ficaram conversando sobre música. Nosso cantor procurava ensinar ao amigo alguns acordes no violão enquanto eu e Vanessa sentíamos aquela gostosa fome pós-sexo. Fomos juntos para a cozinha preparar nosso lanche. Quando voltamos, os dois continuavam ali. Só os dois na rua deserta como dois lobos solitários até que o grande cutucou o mais baixo e disse:


– Eu não sou balão, mas vou subir!

 

Juntaram suas coisas como um Don Quixote e um Sancho Pança e subiram a Bela Cintra em direção à Paulista. Antes de sair, ele fez uma reverência para Vanessa e voltou a cantar It´s now or never. Acompanhamos sua retirada até não ouvirmos mais sua voz grave e suave. Aquela manhã foi o marco inicial de nossa vida conjugal e o maior incentivo que tínhamos até ali recebido para não desistir da nossa caminhada.

 

Víamos a dupla, com certa frequência, durante todo o tempo em que moramos em nosso apartamento da Bela Cintra. A imagem do Elvis ficou muito tempo nas minhas retinas e, durante variados momentos da minha vida ela surgia como estímulo ou advertência para as minhas atitudes. Aprendi muito com ele, apenas observando-o no seu caminhar ou na sua prostração quando a bebida tomava conta da sua mente e era necessário ligar para um serviço da prefeitura que recolhe mendigos em albergues. Várias vezes ele foi levado, principalmente durante o inverno. Quando achávamos que não o veríamos mais ele sempre retornava com seu violão e seu copinho de água mineral.

 

Várias vezes me pus a pensar no Elvis e a tentar entender como um ser humano pode chegar ao estado de decadência ao qual ele chegara, sem nunca encontrar a resposta. Nível cultural ele devia ter por causa do inglês perfeito mesmo restrito às letras das músicas que ele cantava. Sensibilidade, com certeza. Prova disso era o gosto pela música e por repassar seus conhecimentos ao outro mendigo. Quem sabe, o fato de ser negro tenha impedido seu acesso a melhor educação e emprego ou alguma decepção amorosa tenha contribuído para jogá-lo na sarjeta. O curioso desses meus questionamentos a respeito dos motivos que levaram Elvis a se tornar mendigo estavam bastante associados aos meus próprios receios quanto ao futuro. Talvez, inconscientemente, eu me transportasse para o lugar dele, quer dizer, talvez eu me visse como o próprio Elvis, abandonado pelas ruas depois de não ter conseguido vencer as dificuldades da nova vida que estava assumindo. Naquela época eu não conseguia ter esta clareza justamente por causa do medo que muitas vezes tomava conta de mim. Pesava e muito o compromisso de ser o provedor de uma vida o mais próximo possível da qual tivera Vanessa antes de abandonar tudo para ficar comigo.

 

Ela, ao contrário, não demonstrava nenhuma dessas fragilidades, muito menos qualquer tipo de arrependimento pela escolha que fizera e eu, envergonhado, escondia dela meus receios. Mais do que isso, eu tentava fazê-la acreditar no homem forte e determinado com quem ela ansiava viver; porém, eu ainda estava muito longe disso. Além de trabalhar, ela voltou a estudar enquanto eu continuava enviando currículos e participando de entrevistas que resultavam em nada. Eu pensava estar fazendo a coisa certa quando, na realidade, estava mesmo era me escondendo atrás da imagem de marido exemplar para não demonstrar o pavor que vinha aumentando a cada mês de desemprego. Sem saber, ela acabava ampliando ainda mais o problema dizendo que na hora certa eu encontraria o emprego ideal e, assim, descartávamos ofertas de trabalho que considerávamos aquém das minhas capacidades.

 

Esse tipo de atitude duraria apenas enquanto o dinheiro que eu havia recebido da minha demissão não acabasse. Antes do meio do ano para ser mais preciso. Essas eram as dificuldades pelas quais passávamos. Eu, em particular, pela minha teimosia em não admitir que estava me pelando de medo dos compromissos assumidos, principalmente depois que a família aumentou, na virada de 1999 a 2000. A única pessoa que conseguia me fazer admitir isso, por mais absurdo que pareça, era o Elvis. Não que ele tivesse a mínima consciência disso ou qualquer participação na nossa vida. Ele era apenas e tão somente o enviado especial da mensagem divina de que a minha união com Vanessa representava o início da nossa salvação. Infeliz de mim que não entendi a mensagem. Se tivesse entendido, teria feito tudo de maneira diferente, sabendo reconhecer que era um ser humano falho como todos os outros, que padecia dos mesmos receios e da mesma necessidade de tentar mostrar ser algo maior do que eu pensava ser naquele momento específico da minha vida.

 

Apesar de meus temores, ficamos mais tempo no nosso apartamento do que o casal Collor na Casa da Dinda. Pela primeira vez na história um presidente brasileiro foi obrigado a renunciar ao mandato para não sofrer um impeachment, uma palavra até então desconhecida do vocabulário político da Nova República. Pior do que engolir um impeachment foi eu me deixar vencer pelo medo e sair covardemente de cena. Inexplicavelmente voltaram meus desejos de vagar à noite pelos lugares mais obscuros da cidade. Fazia isso sem que Vanessa percebesse, justamente quando ela estava estudando à noite ou mesmo durante o dia quando ela estava trabalhando. Eu dizia que estava participando de entrevistas de emprego. Quando voltava, de cara amarrada, contava uma porção de mentiras para justificar o porquê de não ter sido escolhido. O cruel da situação foi estar com uma filha de cinco anos quando aconteceu o que eu mais temia.

 

Nas minhas andanças pela cidade peguei o hábito de conversar com mendigos e toda a espécie de decaídos da vida. Não era algo novo, era um impulso inexplicável desde que deixei a Vila Esperança e me instalei em São Paulo. Lembrava do meu apartamento da Frei Caneca, das prostitutas e operários da construção, do Radialista. Não estou tentando justificar e nem pedindo compreensão da minha sina maldita. Ninguém precisa concordar ou aceitar minhas justificativas. Talvez eu seja quem menos conheça a razão das minhas atitudes. Como eu disse há pouco, aconteceu o que eu mais temia e depois disso eu não tinha mais como permanecer em casa e pôr em risco a minha família. Conheci um rapaz de rua que me levou onde hoje fica a Cracolândia. Ali, ressurgiram todos os fantasmas que haviam dado uma pausa na minha mente depois de eu ter conhecido Vanessa. Minha princesa, minha menina burguesa não poderia jamais me ver na situação em que eu estava chegando. Em 2004, quando Nadia estava com cinco anos e eu tinha um emprego, mesmo que não fosse o ideal, covardemente, eu fugi de Vanessa, da minha filha e da minha vida. 



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