Acuada
O sol castiga o centro velho da cidade de São Paulo,
apinhado de gente indo e vindo freneticamente. Um carro entra bastante
acelerado em uma rua estreita próxima à Praça da Sé. A mulher que o conduz pisa
no freio instintivamente e o carro para com os pneus dianteiros tocando
levemente a faixa de pedestres. O povo passa reclamando e apontando para
a faixa pintada no asfalto escaldante do meio-dia. Agarrada ao volante, ela não
consegue controlar o medo.
O tempo estanca, o calor aumenta. Ela desce um pouco o
vidro do lado do passageiro e é envolvida pelo cheiro de xixi requentado, pelo
barulho dos carros e pelo burburinho apressado dos pedestres. A ansiedade com o
tempo que não passa, com o semáforo que não abre, com a sujeira amontoada nas
calçadas se reflete em seu rosto tenso e nas mãos trêmulas.
Subitamente, ela ouve uma batidinha no vidro do
passageiro e gira o pescoço no exato momento em que o vermelho se evapora no
semáforo e o seu pé abandona a embreagem. O segundo interminável se
prolonga nos olhos verdes do mendigo, no balbuciar dos seus lábios, no
movimento da mão passando no vão da porta segundos antes de o vidro ser
fechado. Pelo retrovisor ela avista o homem envolto num saco plástico tão sujo
quanto ele.
Acelera o quanto pode pelas ruas estreitas da mesma
São Paulo das boutiques, dos shopping centers, parques e avenidas que ela
costuma frequentar com muita desenvoltura. Ainda assustada com a aparição
inesperada do morador de rua que, por pouco não teve a mão presa pelo vidro,
ela acelera na ânsia de finalmente sair dali deixando para trás a imagem
degradada daquele homem tão sujo, mas com olhos tão verdes e luminosos feito um
farol urbano.
Gênese
Você sabe em que dia eu nasci? Acredito que sim.
Mesmo que não saiba, não tem como entender o porquê de eu carregar essa marca,
como Caim. Vinte e quatro de agosto de 1954. Uma data que não lhe diz nada,
assim como para a maioria das pessoas. Nos dias de hoje ninguém mais se
interessa por história. Se você se interessasse, saberia que foi na madrugada
desse dia fatídico que Getúlio Vargas disparou um tiro contra o próprio peito,
nas dependências do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.
Os motivos não vêm ao caso agora, o que interessa
saber é que o suicídio do presidente da República causou uma verdadeira comoção
nacional. Para você ter uma ideia do que estou falando, pesquise na internet
como foram os dias logo após a morte do Airton Senna, um mero piloto de fórmula
1 que passou a maior parte da vida fora do Brasil e que pouco ou nada tinha a
ver com o nosso povo. Vidas distintas, adoradores distintos, consequências
semelhantes. Luto nacional.
Você sabe o que significa nascer no mesmo dia em que a
nação inteira está de luto e chorando pela morte do seu presidente? É uma
espécie de sina maldita nascer no dia em que o “pai dos pobres” resolve acabar
com a própria vida. Não, não é loucura... estou bastante debilitado, mas não
louco. Trata-se da realidade carimbada na minha alma desde que saí do ventre da
minha mãe. Predestinação, destino, quimera, fato irreversível sem a mínima
possibilidade de contestação. Pode chamar do jeito que você quiser, a realidade
é uma só: no mesmo dia em que morreu, pelas próprias mãos, o homem que saiu da
vida para entrar na história, eu entrei na vida predestinado a não fazer
história.
Entende agora por que essa angústia me acompanha desde
que nasci? O que mais poderia esperar da vida um bebê minguado, de olhos
verdes, vindo à luz num quarto pobre pelas mãos de uma parteira de ouvidos
colados ao rádio, chorando feito carpideira por causa da morte do pai dos
pobres? Que direito tinha eu de nascer de olhos tão verdes em meio a criaturas
marcadas pela pobreza? Olhos verdes cercados por olhos negros e marrons. Que
desperdício! Dizem que chorei mais da conta quando vim ao mundo. Se a vida
fosse boa, todos nasceríamos sorrindo.
Será que Getúlio morreu sorrindo? Se ele sorriu ou
chorou no seu último suspiro, é um fato destituído da menor importância na
trajetória da minha vida, assim como a minha vida não tem a menor importância
na trajetória do mundo. Sabedor desde cedo de que não teria a menor
possibilidade de interferir no andamento do mundo, sobrou-me, como único
recurso, prestar atenção em todos os fatos históricos importantes e tentar
entender qual a conexão deles com os fatos sem importância da minha vida.
Entreguei-me de corpo e alma a tão insignificante
propósito de vida, como se fosse o maior dos trabalhos que Deus tivesse deixado
para mim na minha curta passagem pelo mundo. Você pode até me perguntar se isso
tem sido um importante legado divino ou, inversamente, se não passa de um fardo
que venho carregando até hoje. Que resposta lhe dar? Não sei, não sei ainda,
por enquanto não sei. No universo cheio de incertezas em que se transformou
minha mente nos últimos anos, não existe o mínimo espaço para que eu possa
elucidar esta questão.
Eu sei que você se empenhou enormemente para me
encontrar, mesmo não tendo garantia nenhuma se valeria ou não a pena. Da minha
parte, acho que não. Você é jovem, tem todo o vigor da juventude e um futuro
enorme esperando para ser conquistado. Estou seguro de que você não nasceu com
nenhuma sina, nenhum mau agouro lhe persegue, a liberdade é a sua marca. Somos
pessoas de épocas distintas e você não herdou nada que lhe impeça de trilhar o
caminho que quiser trilhar. Você nasceu forte na carne e no espírito. Deus
tocou em você e teve a divina percepção de lhe dar olhos tão verdes quanto os
meus, mas, felizmente, sem juntar a isso uma sina maldita como a minha. Agora, por favor, me deixe dormir...
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