terça-feira, 15 de novembro de 2022

CAPÍTULO 17 - OLHOS VERDES

 

Capítulo 17 - Olhos verdes - parte 1


O sol castiga o centro velho da cidade de São Paulo, apinhado de gente indo e vindo freneticamente. Um carro entra bastante acelerado em uma rua estreita próxima à Praça da Sé. A mulher que o conduz pisa no freio instintivamente e o carro para com os pneus dianteiros tocando levemente a faixa de pedestres.  O povo passa reclamando e apontando para a faixa pintada no asfalto escaldante do meio-dia. Agarrada ao volante, ela não consegue controlar o medo. O tempo estanca, o calor aumenta. Ela desce um pouco o vidro do lado do passageiro e é envolvida pelo cheiro de xixi requentado, pelo barulho dos carros e pelo burburinho apressado dos pedestres. A ansiedade com o tempo que não passa, com o semáforo que não abre, com a sujeira amontoada nas calçadas se reflete em seu rosto tenso e nas mãos trêmulas. Subitamente, ela ouve uma batidinha no vidro do passageiro e gira o pescoço no exato momento em que o vermelho se evapora no semáforo e o seu pé abandona a embreagem. 


O segundo interminável se prolonga nos olhos verdes do mendigo, no balbuciar dos seus lábios, no movimento da mão passando no vão da porta segundos antes de o vidro ser fechado. Pelo retrovisor ela avista o homem envolto num saco plástico tão sujo quanto ele. Ela acelera o quanto pode pelas ruas estreitas da mesma São Paulo das boutiques, dos shopping centers, parques e avenidas que ela costuma frequentar com muita desenvoltura. Ainda assustada com a aparição inesperada do morador de rua que, por pouco não teve a mão presa pelo vidro, ela acelera na ânsia de finalmente sair dali deixando para trás a imagem degradada daquele homem tão sujo, mas com olhos tão verdes e luminosos feito um farol urbano. 


Ao entrar no carro no dia seguinte, Vanessa percebe um pedaço de papel caído no chão do lado do passageiro. Pega o papel, já bastante amassado, e lê o que está escrito em letras bastante trêmulas.

 Meus olhos são espelhos vivos,

 testemunhos da crueza e ferocidade das ruas.

 Meus pés caminham sobre escombros, minhas pernas

 são pontes que ligam vida, doença e morte.

 Os caminhos que sigo deixam apenas rastros do que fui,

 pegadas frágeis facilmente levadas pelo vento. 

 

Intrigada, ela guarda o papel na bolsa e vai trabalhar. Por causa de um congestionamento monstro tem de ficar parada por mais de uma hora. #Nadia, vou chegar tarde, tá tudo parado na 23.#


Tem dia que São Paulo cansa. – pensa Vanessa – De que adianta ter carro se você é obrigada a ficar parada na rua com mil coisas pra fazer? Deve ser a proximidade do Natal. Logo começará mais um novo ano, 2014, mais um ano sem Rodrigo. Quatorze anos sem ele. Ainda me pergunto, por que ele foi embora daquele jeito? A vida não estava fácil, é verdade, mas nós já tínhamos passado por tantos momentos difíceis. Parece estranho pensar nele depois de tanto tempo. A verdade é que eu ainda amo muito esse homem, sinto sua falta e não consigo dizer isso a ninguém, nem a Nadia.


Ela ia fazer seis anos quando ele saiu de casa. Hoje ela é uma mulher, não deve mais sentir necessidade de um pai. Por que então ela não para de pensar que o Rodrigo voltará a qualquer momento? Na verdade, eu é que ainda não preenchi o espaço deixado por ele. Eu não sou mais uma menina, devia enterrar o Rodrigo de uma vez por todas e viver a minha vida. Logo minha filha vai se juntar com o Thomaz e eu não posso fazer nada pra impedir. Seria um absurdo proibi-la de morar com o namorado depois de meus pais tentarem fazer a mesma coisa comigo”. 

 

Nadia estava a caminho do apartamento de Thomaz para ver o jogo Brasil e Alemanha. Passou uma mensagem pelo WhatsApp e saiu. Não conseguia conter a ansiedade, precisava contar ao namorado o acontecimento inesperado do dia. Praticamente um ano depois de ter dançado com aquele mendigo na Rua Augusta, acabou descobrindo outro poema dele. Sua amiga Catarina foi quem recebeu o poema quando estava passando pela Avenida Sumaré. Parou em um farol e o mendigo se aproximou da sua janela. Trazia um pedaço de papel na mão e um sorriso no rosto, mas ela não abaixou o vidro. Ele continuou ali parado e só então ela reparou naqueles olhos tão verdes. Abaixou o vidro, ele jogou o papel para dentro do carro e saiu apressado. O farol abriu e ela perdeu o mendigo de vista.


Nadia desenrolou o papel e leu o pequeno texto escrito com letras trêmulas:

 

São Paulo é gente, seu povo é formiga; seus carros, ônibus,

motos, bicicletas, carroças são glóbulos brancos e vermelhos.

São Paulo é pele, nervos, células, cal, concreto e metal.

São Paulo é migratória, acolhedora, dispersiva e aglutinadora.


CAPÍTULO 17 - OLHOS VERDES

  Capítulo 17 - Olhos verdes - parte 1 O sol castiga o centro velho da cidade de São Paulo, apinhado de gente indo e vindo freneticamente. U...